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O que é um devir para Gilles Deleuze? (Parte 2), por François Zourabichvili

Por François Zourabichvili
Tradução: Diogo Corrêa Silva
Revisão: Samantha Sales

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Conferência pronunciada em Horlieu (Lyon), no dia 27 de março de 1997.

Deixemos agora o primeiro regime de devir e voltemos à relação com o animal. É necessário esclarecer um equívoco desde o início: evidentemente, tudo acontece na cabeça do homem, e não diz respeito ao animal, ou diz respeito a ele apenas como um objeto ou como percepção do homem (exceto no caso de uma relação concreta com um animal, por exemplo, a domesticação).

Deleuze & Guattari trabalham com quatro exemplos recorrentes: 1° a visão do vitelo que morre na obra do romântico alemão Moritz; 2° o pensamento de um grupo de ratos agonizando na adega em um texto Hofmannsthal; 3° a visão da grande cachalote branca (Moby Dick) em que o capitão Achab tem a certeza de jogar todo o seu destino; 4° o espetáculo de um cavalo de tração que cai na rua, sob os olhos do pequeno Hans, psicanalisado por Freud. Cada vez, é uma emoção demasiado forte para o sujeito e a experiência de uma despossessão de si que implica uma espécie de “simpatia” com o animal. Mas o que importa é a estrutura lógica do fenômeno: a simpatia aqui se distingue da fusão ou da comunhão.

Falaremos de “simpatia” na medida em que captar, envolver as relações do outro, equivale a envolver o modo de sentir do outro. Achab sente a baleia e antecipa suas reações; tudo o que ela foi pode ser realizado ou repetido no confronto sem sentido, irracional, absurdo visto de fora, com ela. Mas Deleuze & Guattari acrescentam: ele devém-baleia, torna-se uma baleia. Em que sentido? Ele não se transforma em baleia, nem tenta assemelhar-se a ela: ele devém e torna-se baleia na medida em que captura o modo de sentir, de se aproximar e de se afastar da baleia, e na medida em que essa sensibilidade estrangeira trabalha a sua, age dentro dela para distorcê-la e mudá-la. Até certo ponto, ele sente o que ela sente, ele a sente sentir. Se ele não se torna uma baleia, há objetivamente uma baleia no que ele se torna; sua vida e afetividade o envolvem.

Não trocamos o que éramos pelo que se espera que nos tornemos, não trocamos nosso próprio sentir pelo sentir do outro, nós não ocupamos o lugar do outro: isso seria mística, um chamado à fé, a uma certeza que vai além da experiência. O problema de Deleuze & Guattari é totalmente outro: pensar no encontro, ou no afeto num sentido forte. Ora, nossa afetividade não é sacudida pela troca de uma sensibilidade por outra, mas pela diferença entre as duas, quando ela mesma se torna sensível.

Assim, a síntese de sensibilidades heterogêneas não é feita do ponto de vista de uma terceira sensibilidade, neutra e transcendente: se houvesse uma, ela ainda seria efetivada do seu próprio ponto de vista. O afeto do encontro é a ressonância de um no outro. Envolver o outro significa incorporar às suas próprias relações, relações heterogêneas como heterogêneas, ou envolver uma “distância”. Envolver o animal não é o mesmo que sentir como ele se sente (como podemos ter tal pretensão ou a certeza de realizá-la?), mas sentir como nós sentimos que ele sente, sentir o sentir em nós. Um outro sentir se alojou objetivamente em nós, que não é o dele, e que no entanto lhe é atribuível. Envolver uma outra sensibilidade significa, na verdade, que nos sentimos fugazmente de uma forma outra do que a nossa, como sentiria alguém diferente de nós; e recolhemos os efeitos dessa outra sensibilidade em nós mesmos. Ora, se esse sentir outro não é mais objetivamente o do animal, ele só emerge porque a contemplação traz em nós uma subjetividade do animal. Nós passamos para o que vemos (“zona de indistinguibilidade”), e o que vemos não é nós: distorção objetiva de nossa subjetividade. A subjetividade que emprestamos ao animal é “subjetiva” sem ser imaginária, pois não é separável do que realmente vemos.

Insistamos nesse ponto, em que talvez esteja em jogo a importância do conceito de deleuzo-guattariano. Há um paradoxo dessa sensibilidade outra que nós não podemos apenas atribuir ao animal: ela não é mais objetivamente a nossa (já não nos reconhecemos nela) sem no entanto ser objetivamente dele. O animal é a causa de uma alteração afetiva em nós. Por mais insuspeitável que seja a forma como o animal sente (a tal ponto que a questão da diferença entre uma sensação animal e uma sensação humana nem sequer faz sentido, uma vez que uma sensibilidade só é sensível ao contato efetivo de um outro), a sensibilidade que se torna a nossa no contato com ele e que só podemos lhe atribuir é, no entanto, objetivamente, uma outra forma de sentir, pela qual nos animal [nous devenons-animal]. Objetivamente, o animal fez-nos sentir de forma diferente, fez-nos ganhar uma zona de nós próprios onde já não nos reconhecemos mais, e onde nos sentirmos outro faz-nos, desse modo, sentir nós mesmos de outro modo. E é aí que está o irreversível, ou o devir. Ao mesmo tempo que não saímos de nós mesmos, não entramos no outro, mas na relação com o outro o envolvemos em nós, o implicamos em nós, ou a nossa capacidade de sentir implica uma outra capacidade de sentir, e assim ela não é mais a mesma, sem contudo se tornar a do outro[i].

Não há, como podemos ver, nenhuma comunhão mística, mas sim uma síntese paradoxal do heterogéneo, imanente: é a importante contribuição de Deleuze & Guattari para a teoria da simpatia. Um heterogêneo envolve um outro; um heterogêneo ressoa em um outro (“síntese disjuntiva”). Não trocamos lugares, porque ninguém do sai do seu lugar, que se desloca ao encontro do outro. O lugar? Nada mais do que um corpo, e as singularidades que marcam um percurso de existência (a única definição do indivíduo[ii]). Em Deleuze, os indivíduos são “mônadas” que não se visitam umas às outras nem pela porta nem pela janela, mas mônadas “nômades” que deslocam suas singularidades sobre um plano de exterioridade, capturando outras e deixando-se capturar por elas.[iii]

O quanto o antropomorfismo se torna aqui um falso problema, nós o vemos se levamos em conta essa atribuição paradoxal ao animal, essa crença necessária no coração do afeto. A persistência da não-relação, a assimetria do processo se traduz nesta cláusula constantemente relembrada: o homem devém animal, mas com a condição que o animal devenha outra coisa. À medida que o homem se torna animal, o animal no homem “devém-intenso” ou “molecular”. “Nós só nos tornamos animais molecularmente[iv].” É a compreensão puramente afetiva do animal da qual falamos no início: o que é – ou melhor, o que se torna, devém – o animal enquanto somos afetados por ele.

Um pássaro voa: banalidade, hábito, caráter distintivo da ave. Mas agora, por meio da contemplação, encontro, em um sentido forte, o pássaro que voa, e entro em uma verdadeira relação com o que eu não sou, uma relação positiva que não tem relação comigo (a não ser em um nível comum muito geral[v]): voar torna-se uma sensação em mim. O voo deixou de ser um simples objeto em minha representação, tornou-se um afeto. Eis-me afetado pelo fato de voar enquanto tal. Deleuze, em Logique du sens, mostrou que a experiência aparentemente benigna de significado é inseparável de um afeto que implica uma distorção do sujeito[vi]. A experiência consiste nisto: experimentar “voar” como um acontecimento puro, pura singularidade de significado, independentemente do sujeito a que o verbo geralmente é atribuído (o pássaro). Ora, sentir o voo enquanto tal, ou o acontecimento do voo, só pode significar uma coisa: sentir-se voando. Isso não é uma experiência psicológica reservada a imaginações vívidas, é uma vertigem lógica, a experiência do próprio significado – devir-pássaro (é dizer que o delírio clínico, reciprocamente, comporta uma parte de experiência lógica).

Agora vejo a carapaça da barata. Sentir a carapaça, ser afetado por ela, pelo acontecimento “ter uma carapaça”, é senti-la em si mesmo, em seu próprio corpo, com espanto. O afeto é inseparável da experiência de uma possibilidade de vida que é, no entanto, incompatível com a minha. Kafka, por meio da metamorfose imaginária de Gregor Samsa, não descobriu o que sente barata, ele a fez ressoar dentro dele, como uma vida estrangeira que se apodera da sua, que se mistura com a sua.

Enfim, um uivo de lobo. Sombrio, patético etc.: esses ainda são apenas sentimentos humanos circunstanciais (embora que sejam realmente experimentados) em face de um fenômeno repertoriado. Mas o uivo torna-se verdadeiramente intolerável quando se sente que ele vem do interior do lobo. Sempre a mesma experiência lógica: experimentar “uivar para a lua” como um evento puro e possibilidade de vida.

Portanto, há alguma objeção a que o nadador-aprendiz devenha água? Certamente não, com a exceção de que esse devir irá necessariamente envolver a ideia de dispersão de si associada a uma replicação ao infinito. Qualquer parte do corpo de um animal, qualquer gesto, postura ou faculdade pode ser sentida em um sentido forte, e não apenas percebida do exterior como um objeto representável, sem que tenha necessidade para isso de ganhar o lugar do outro. Aquele que está “se tornando” [no sentido do devir] não é um substituto. Mais uma vez, o contrassenso aqui é próximo de um absurdo: porque se eu sinto a carapaça do besouro, o absurdo não é acreditar que eu a sinto como o besouro, mas antes supor que o próprio besouro é ele próprio afetado por sua própria carapaça. Sentir implica um distanciamento, uma perspectivação. Talvez só sintamos que temos pele nas costas depois termos lido a Metamorfose de Kafka; e o mais estranho é sentirmos que temos pele nas costas. Sem o desvio pela carapaça ou outra coisa qualquer[vii], como podemos ser afetados pela carne ou pela pele? É preciso que ela nos atinja de repente, como um estrangeiro em nós; é preciso a ressonância de uma outra vida em nós para que a nossa, por sua vez, ressoe. Só há auto-afetividade por meio de atravessamento de um exterior irredutível, do encontro com outra coisa; não há auto-afetividade a não ser no devir. E se o animal está no homem como algo estrangeiro, o exterior não está confinado ao outro lado da barreira do eu como uma pura negação ou não-relação: nós o envolvemos enquanto tal[viii].

Para finalizar, abordemos a questão da escrita, e a ideia de que o devir da escrita, como todo devir, é inseparável de um devir-outra-coisa-do-que-ela-mesma.

Dois temas serão aproximados aqui. O primeiro, antes de tudo:

a limite não está fora da linguagem, ele é o seu fora: é feito de visões e audições não-linguageiras, mas que só a linguagem torna possíveis (Critique et Clinique, p. 9).[ix]

Que são essas “visões e audições não linguageiras”, que se diz que não existem fora da linguagem? Primeira interpretação: é a experiência familiar da descrição, um escritor nos faz ver, ouvir, sentir coisas. Não se lê sem imaginar, embora a descrição seja sempre incompleta e as imagens não sejam exatamente formadas na mente. Se Deleuze quisesse falar sobre o fato de que um escritor nos faz ver e ouvir coisas, que são coisas e não palavras, mas que essas coisas são fictícias, existem apenas por meio de palavras, isso seria um truísmo. Devemos, pois, procurar uma outra interpretação e, para isso, temos de introduzir um segundo tema, do qual o primeiro nos parece ser solidário:

Escrever como um cão que cava o seu buraco, um rato que constrói a sua toca (Kafka, p. 33).[x]

Escrever como um rato traça uma linha, ou como ele torce seu rabo, como um pássaro lança um som, como um felino se move, ou dorme pesadamente (Dialogues, p. 90). [xi]

Hofmannsthal, ou melhor, Lord Chandos, cai em fascínio diante de uma “população de ratos” que estão morrendo, e é nele, por meio dele, nos interstícios de seu eu perturbado, que “a alma do animal mostra seus dentes ao destino monstruoso: não piedade, mas participação contra a natureza. Então o estranho imperativo nasce nele: ou bem parar de escrever, ou escrever como um rato (Mille plateaux, p. 292). [xii][xiii]

A metamorfose é o oposto de metáfora. Não há mais nenhum sentido literal ou figurativo, mas distribuição de estados no espectro da palavra. A coisa e as outras coisas não são mais do que intensidades percorridas pelos sons ou palavras desterritorializadas, seguindo sua linha de fuga. Não se trata de uma semelhança entre o comportamento de um animal e o do homem, menos ainda de um jogo de palavras. Não há mais nenhum homem ou animal, já que cada um desterritorializa o outro, numa conjunção de fluxos, num continuum de intensidades reversíveis. Trata-se de um devir que inclui, ao contrário, o máximo de diferença como diferença de intensidade, que atravessa um limiar; alta ou queda, baixa ou ereção, acento de palavra. O animal não fala “como” um homem, mas extrai da linguagem tonalidades de sem significações; as próprias palavras não são “como” animais, mas escalam por conta própria, latem e pululam, sendo cães, insetos ou ratos propriamente linguísticos. Fazer vibrar sequências, abrir a palavra a intensidades interiores inauditas, em suma, um uso intensivo e assignificante da língua. Da mesma forma, não há mais um sujeito da enunciação nem um sujeito de enunciado: não é mais o sujeito do enunciado que é um cão, o sujeito de enunciação que permanece “como” um homem; não é mais o sujeito de enunciação que é “como” um besouro, o sujeito de enunciação que permanece um homem. Mas um circuito de estados que forma um devir mútuo, no seio de um agenciamento necessariamente múltiplo ou coletivo (Kafka, pp. 40-41).

Uma dificuldade nos interrompe: o devir animal afeta o personagem? Ou Kafka? ou a sua escrita? Uma coisa ao menos é clara: a ficção não é uma metáfora, mas descrevê-la também não é a finalidade do texto. Ela é sobretudo o suporte de um devir-animal que constitui, propriamente falando, o programa do texto, tanto para o autor como para o leitor.

A hipótese deleuzo-guattariana é que não há criação a não ser em relação a uma outra coisa: em suma, que a faculdade que cria, ou torna-se outra do que ela era (invenção de uma nova forma de escrever), cria apenas em relação com outra coisa que não ela (com um conteúdo). Devir-outro, para a escrita, deve, portanto, ser entendido em dois sentidos solidários: escrever de outro modo, mas escrever de outro modo porque a escrita entrou em contato com outra coisa que ela mesma. Vemos o interesse dessa forma de colocar o problema: se Deleuze & Guattari encontram a fórmula lógica dessa identidade dos dois significados do devir-outro, eles obtêm ao mesmo tempo uma teoria da adequação expressão-conteúdo, permitindo compreender o que cada um se repete sem chegar a pensá-lo: por que escrever outra coisa é necessariamente escrever de modo diferente.

Escrever como um rato que agoniza: o conteúdo mudou na maneira de escrever, ambos se tornaram indiscerníveis. Mas isso é por que são parecidos, ou imitam um ao outro? Nisso consistem possibilidades literárias reais, mas o texto de Kafka começa pela exclusão esta hipótese. O que significa “escrever como um rato que agoniza”? Não há um risco de recairmos em algum tipo de comentário desatualizado, usando metáforas para descrever o estilo, e escavando para fazê-lo a partir do conteúdo, como se o estilo e o conteúdo fossem semelhantes (a adequação é então conseguida por meio de trapaça). Não está claro por que razão se deve exigir que se descreva caninamente um cão, mas tigremente um tigre, ou o que isso poderia significar. Deleuze & Guattari sabem bem que a escrita de Hofmannsthal não se assemelha à agonia de um bando de ratos, nem a de Melville à estratégia de uma baleia para escapar de seus predadores. A primeira impressão é, no entanto, que eles nos deixam loucos: escreva como animais (ou outra coisa qualquer), mas tenha cuidado – sem imitá-los (senão você obviamente vai parar de escrever). Uma outra formulação nos coloca no caminho, no trecho dos Diálogos citados acima: “dar escrita àqueles que não a têm”.

O problema é aquele que nós colocamos desde o início: pensar uma espécie de identidade ou de indistinção de expressão e do conteúdo, uma vez excluída a categoria impotente da imitação. Esbocemos uma interpretação. O que é um animal na linguagem? Ele é descrito, representado, com mais ou menos habilidade (nós somo dotados da capacidade mais ou menos bem fazer um uso comum da língua). Mas a escrita propriamente dita começa quando a representação não é mais apenas exata, mas viva, quando se atinge o animal intenso, afetivo, pois isso supõe recursos sintáticos próprios, um estilo.

O escritor só se torna um animal criando a sintaxe que dá vida ao (e faz sentir o) animal entre as palavras. Ele torna-se um animal, mas com a condição que o animal, por conta própria, se torne pura escrita. O animal é afetivo apenas através da sintaxe, e por meio da própria sintaxe afetada pelo cavalo. Era necessário que a escrita envolvesse o cavalo para se lançar em um devir (o estilo), mas que, ao contrário, esse cavalo envolvesse a escrita (posto que não há cavalo afetivo a não ser por meio de palavras). Aqui tocamos no encontro conteúdo-expressão, que coloca tanto um quanto outro em uma relação necessária entre si: porque um só devém em sua relação com o outro.

Podemos então dizer que o autor escreve como o animal: a conjunção agora se refere ao paradoxo de uma identidade sem semelhança. Paradoxo, mas não contradição: temos a lógica que nos obriga a afirmá-lo. Nessa fase, de fato, não há mais nenhuma distinção possível entre sentir e escrever, confundindo-se a animalidade com o movimento sintático. Sentir o rato que agoniza altera a escrita, mas é por meio dessa escrita alterada que o rato adquire consistência. Fazer existir por meio de palavras o rato que nos afeta, é também torcer a sintaxe sob a imposição do rato. A escrita torna-se ativa ao capturar e se apropriar das forças do rato. O rato afetivo e a sintaxe afetada não se parecem, mas os dois se acasalaram, conjugam suas forças. Ambos, embora “distintos” (expressão/conteúdo), tornam-se “indiscernáveis”. Nada mais distingue o movimento do animal do movimento das palavras. Essa identidade não apaga, porém, a diferença de natureza [entre um e outro], uma vez que a escrita não se assemelha ao animal, não consiste de modo algum em imitá-lo, e desenvolve-se num domínio específico em que a eventual evocação de um rato (conteúdo) revela a auto-afecção. Ela produz a semelhança do animal (uma representação viva) por meios que não se assemelham com ele. Sempre essa identidade sem semelhança, essa comunicação sem nada em comum: um único e mesmo processo, se desdobrando em dois planos diferentes (expressão/conteúdo).[xiv]

Deleuze pode então dizer que o animal vive entre palavras: isso não é mais uma metáfora, mas a literalidade – ao pé da letra, um animal. Este vive, e nada está além de vivo, puro afeto ou acontecimento, ainda que não viva fora das palavras que o fazem viver, porque ele mesmo foi forçado pelo poder do animal real. “Escrever como um rato”, por conseguinte – porque a linguagem só se torna escrita ou estilo ao ter acesso a essa “zona de indiscernibilidade” onde a escrita é indiscernível do o animal, embora ela não seja formalmente distinta dele, uma vez que ele é anima. Animal de escrita tanto quanto escrita animal, língua animal escavada na própria língua, o uso animal da língua (dado o paradoxo da objetividade analisado acima):

uma língua estrangeira não é escavada na própria língua sem que toda a linguagem por seu turno safra uma reviravolta, seja levada a um limite, a um fora ou um avesso que consiste em Visões e Audições que já não pertencem a língua alguma. Essas visões não são fantasmas, mas verdadeiras Ideias que o escritor vê e ouve nos interstícios da linguagem, nos desvios de linguagem. Não são interrupções do processo, mas paragens que dele fazem parte, como uma eternidade que pode ser revelada no devir, uma paisagem que só aparece no movimento. Elas não estão fora da linguagem, elas são o seu fora. O escritor como vidente e ouvidor, finalidade da literatura: e a passagem da vida na linguagem que constitui as Ideias (…) Para escrever, talvez seja preciso que a língua materna seja odiosa, mas de tal maneira que uma criação sintática nela trace uma espécie de língua estrangeira e que a linguagem inteira revele seu fora, para além de toda sintaxe (Critique et clinique, Minuit, 1993, p. 16-17).[xv]

Notas

[i] Os exemplos poderiam ser mutiplicados – mostrar, por exemplo, que Kafka em “Josephine a cantora ou o bando de ratos”, Lawrence em “Babé-tortue”, nos dão a oportunidade de sentir e experimentar relações de tempo que não são humanas, que não são as de um homem. São elas as de ratos ou tartarugas? Pelo menos é certo que o homem em contato com ratos e tartarugas experimenta temporalidades estranhas à sua. Os ratos trazem objetivamente ao homem temporalidades que podem não ser as suas, mas certamente não são deles. Pelo menos eles aderem, na cavidade ou como a parte de trás de um reto, aos seus próprios. Um pouco como o homem e a água? Pouco importa que a água não tenha consciência, o homem do mar sente as forças do mar, que são as próprias forças do mar; e neste sentido ele se torna o mar. É bem o outro que sentimos; caso contrário, não compreenderíamos que como poderia haver correspondência, conjugação, abraço mútuo, nem compreenderíamos que poderia haver afeto.

[ii] Sobre a distinção entre o indivíduo-sujeito, segundo os conceitos de “continuum de singularidades” e “síntese disjuntiva”, ver Logique du sens, 16ª série.

[iii] Le pli, Minuit, 1988, p. 189.

[iv] Mille plateaux, p. 337.

[v] Pensaremos aqui nas “noções comuns” de Espinosa.

[vi] Constataremos que o mesmo conceito é chamado de “sentido” na Logique du sens e “afeto” em L’image-mouvement, Minuit, 1983, cap. 6 e 7.

[vii] Por exemplo, o mármore, se pensarmos no Prigioni que Michel-Ange voluntariamente deixou inacabado, para que o mármore aderisse à pele.

[viii] Entendemos então, à primeira vista, certas fórmulas enigmáticas deleuzianas: o percepto é “a paisagem antes do homem”; o sujeito que percebe “passou na paisagem” (Qu’est-ce que la philosophie?, Minuit, 1991, cap. 7).

[ix] N.T. Uso da tradução de Peter Pál Pelbart (Crítica e clínica, 1997).

[x] N.T. Uso da tradução de Júlio Castañon Guimarães (Kafka, Imago, 1975.

[xi] N.T. Uso da tradução de Eloisa Araújo Ribeiro (Diálogos, Escuta, 1998).

[xii] Note-se que a ideia de “escrever como um rato” está ausente do texto de Hofmannsthal, que termina com a impossibilidade de voltar a escrever. É porque para Deleuze esse ponto de chegada é uma partida.

[xiii] N.T. Uso da tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa (Mil platôs – vol. 1, Editora 34, 1995).

[xiv] Vamos pensar aqui na relação entre os “atributos” da substância em Espinosa.

[xv] N.T. Uso da tradução de Peter Pál Pelbart (Crítica e clínica, 1997).

Traduzido de

ZOURABICHVILI, François. Qu’est-ce qu’un devenir, pour Gilles Deleuze ? Conférence prononcée à Horlieu (Lyon) le 27 mars 1997. Disponível em: horlieu-editions.com/brochures/zourabichvili-qu-est-ce-qu-un-devenir-pour-gilles-deleuze.pdf

 Fonte da imagem

Foto: Reprodução/Cambridge Encyclopedia of Anthropology

https://revistacult.uol.com.br/home/deleuze-esquizoanalista/

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