Indicações de Lucas Faial Soneghet (PPGSA/IFCS/UFRJ)
DONZELOT, Jacques. The Policing of Families. Random House Incorporated, 1979.
Donzelot toma para si a tarefa nada fácil de escrever uma genealogia da família. Na verdade, uma genealogia da família nos séculos XVII a XIX na França. Na verdade mesmo, uma genealogia das práticas jurídico-discursivas em torno daquilo que chamamos de família entre os séculos XVII e XIX na França. A questão é análoga àquela de Foucault na História da sexualidade, quando este procura entender o que é afinal de contas essa coisa em torno da qual houve tanto investimento de poder, tanto discurso, tanta obsessão, tanta vontade de verdade na sociedade ocidental. O que a família faz no núcleo do Estado moderno liberal? No que ela se apoia e o que se apoia nela? Que instituições ela faz funcionar, que relações de poder organiza, que profissões e discursos ela legitima?
Além dessas muitas questões, está a tese central: os procedimentos de policiamento (vigilância, controle, conhecimento e punição) que transformam a face da família são responsáveis por instituir as formas de integração social modernas que dão às nossas sociedades seu caráter policiado. Em outras palavras, Donzelot procura entender o processo por meio do qual a família tornou-se de fato célula primária e primordial do Estado moderno no ocidente. Para isso, é necessário entender que o policiamento das famílias proletárias ou populares não é o mesmo que nas famílias burguesas, embora hajam pontos em comum como, por exemplo, o papel da mãe como articuladora da ordem interna da família em relação a ordem externa dos discursos oficiais de Estado e dos discursos profissionais dos saberes psicossociais. Porém, se a mãe burguesa tem o papel de controlar a circulação dos indesejáveis no interior da casa (empregados e babás), bem como a circulação da criança, a mãe proletária tem o papel de controlar a circulação do marido e dos filhos na rua, o lugar de perigo e desordem por excelência. Trazer para a casa, tornar a casa um lugar agradável, um refúgio, um porto seguro. Este veio a ser o objetivo da educação das jovens mulheres. Junto a isso, elas também devem ser capazes de coordenar seus esforços com um novo corpo de profissionais, sejam eles médicos, enfermeiros, psicólogos ou assistentes sociais, dedicado a manter a “saúde da população”. Pois afinal de contas, a família é não somente um nexo produtivo, mas também reprodutivo, tornado responsável, em conjunção a instituições com o hospital, pela manutenção da vida.
Junto ao papel das mulheres, cabe também entender o lugar das crianças. Estas que devem ser protegidas a todo custo do abandono e da possível delinquência, de modo que se institui o tribunal juvenil como cenário por excelência das práticas jurídico-discursivas voltadas a família. Decidir se uma família é capaz de cuidar de uma criança, qual é o ambiente melhor para que ela cresça, quais são os perigos aos quais ela está submetida, é uma tarefa complexa que exige instrumentos igualmente complexos. Aqui, Donzelot nos traz uma incursão na emergência das técnicas de pesquisa social que irão fundar muito do que se entende por ciências sociais posteriormente. O inquérito dos assistentes sociais e as entrevistas dos psicólogos, dois profissionais que o autor chama de “técnicos relacionais”, são dispositivos de policiamento que operam através do conhecimento e do agir sobre as “tensões” internas da família. Por tensões, Donzelot parece indicar as emoções, assimetrias de poder, violência, amor e cuidado que constituem relações intrafamiliares. A briga do casal, a repreensão da criança, a revolta do filho, a culpa da mãe. Tudo isso é matéria prima que vem a entrar numa circulação efetiva de práticas de policiamento com a legitimação das técnicas relacionais baseadas nos saberes “psi” (incluindo o trabalho de assistentes sociais, psicólogos, médicos). Tal circulação efetiva de práticas nada mais é do que a maneira pela qual essas instituições e discursos fazem a família “funcionar” junto a sociedade, não apesar de, mas por causa da tensão entre elas. É por isso que, na psicanálise, a família surge como fundamento da socialização, seio primordial do eu, refúgio, e também fonte das maiores frustrações, neuroses e desvios. A salvação e a condenação vêm do berço. É assim, pela possibilidade de fazer “flutuar” as normas sociais “exteriores” e as dinâmicas familiares “internas” sem torna-las adversárias necessariamente, que a família se torna algo diferente da e absolutamente necessário para a vida social.
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Editora Forense Universitária, 2009 [1966].
Canguilhem é um médico filósofo que escreveu uma filosofia da vida. A vida, enraizada num corpo biológico, é para ele uma “polaridade dinâmica”. Disso decorrem três coisas: primeiro que a vida é perpétuo movimento; segundo que tal movimento se dá pela polaridade valorativa calcada na relação entre o corpo e o ambiente; terceiro que essa polaridade valorativa ganha forma do estabelecimento de “normalidades” provisórias. O livro de Canguilhem é fundamental para quem quer entender como a prática médica se relaciona com a questão do que é o “normal”, a “norma” e a “normalidade”. Passando pela norma da estatística na obra de Quêtelet, pela continuidade entre saúde e doença nas obras de Claude Bernard e Augusto Comte, pelas instituições de normalização que caracterizaram o ocidente no século XVIII (hospital e escola), Canguilhem chega numa filosofia vitalista das normas e do corpo. Estar saudável e, em certa medida, estar vivo, é estar em capacidade de ser “normativo”, o que para ele significa criar novas normas de comportamento no ambiente. Isso porque a vida nada mais do que aquilo que não é indiferente ao ambiente. Viver é valorizar facetas do mundo, reagir, agir e adaptar-se. Fazendo isso, adotamos normas de vida, ou seja, padrões de comportamento baseados numa relação valorativa com o entorno. Normatividade, essa característica do saudável, é não somente seguir as regras, mas também criar novas normas para si. Saúde e doença são qualitativamente diferentes porque o estado patológico tem valor diferente para o organismo. Estar doente é viver uma vida diferente pois é estar numa relação diferente com seu ambiente. Não uma relação diminuída em comparação com o estado de saúde, mas uma relação outra, constituída por uma margem estreita de tolerância em relação ao ambiente. A pessoa saudável age no mundo, é capaz de transcende-lo pela sua normatividade, criando novas normas de comportamento e valorizando o entorno de maneiras diferentes. A pessoa doente tende a estabilidade, visto que quaisquer mudanças no corpo e no ambiente podem acarretar maior sofrimento. Sendo assim, saúde é uma margem de possibilidades na vida, margem essa que é completamente alterada quando se vive com o corpo doente. Além de margem de possibilidades, a saúde também é margem de segurança contra as “infidelidades do meio”, ou seja, os possíveis acidentes e as dificuldades da vida prática. Por isso que, mesmo na doença, há positividade, no sentido de que o doente deve fazer um mundo em que ele possa habitar. O problema é que sua capacidade de feitura do mundo, que para Canguilhem é sua normatividade, é prejudicada pela sua doença, visto que o corpo em estado patológico não tem condições de transcender as normas estabelecidas e estabelecer novas normas de comportamento em relação ao mundo. Trocando em miúdos, diria que estar doente é reduzir o mundo para que seja possível operar nele, enquanto estar saudável é tornar o mundo maior para poder viver.
Entretanto, Canguilhem argumenta que a doença ou o estado patológico são absolutamente normais. Porque normal, no sentido de uma vida enquanto polaridade dinâmica valorativa, é qualquer relação com o ambiente no qual o ser humano age de acordo com normas regulando suas maneiras de ser. Há normalidade na patologia e na saúde. Decorre disso que o anormal não é necessariamente patológico. A anormalidade está em relação de inversão com a normalidade, não em relação de contradição. O anormal só o é em relação a uma norma, ao passo que a norma só é em relação a um anormal que ela define e acusa. É na relação entre corpo e ambiente que se pode entender o que é “anormal”, ou seja, aquilo que não parece se adaptar às normas que regem a relação entre corpo e ambiente. Nesse ponto de vista, o anormal não precisa partir necessariamente de uma disfunção biológica, mas pode ser efeito de normas descabidas. Assim, Canguilhem conclui numa de suas muitas belas frases: “No entanto, diversidade não é doença. O anormal não é o patológico.” (pg. 53).
Se discussões de normalidade e anormalidade, saúde e doença, te interessam, esse livro é incontornável. Se não, a recomendação vale só pelas possíveis citações:
[…] porque o patológico deve ser compreendido como uma espécie do normal, já que o anormal não é aquilo que não é normal, e sim aquilo que é um normal diferente (pg. 81).
É o anormal que desperta o interesse teórico pelo normal. As normas só são reconhecidas como tal nas infrações. As funções só são reveladas por suas falhas. A vida só se eleva à consciência e à ciência de si mesma pela inadaptação, pelo fracasso e pela dor (pg. 83).
Mas é no furor da culpabilidade, assim como é no grito de sofrimento, que a inocência e a saúde surgem como os termos de uma regressão tão impossível quanto desejada (pg. 111).
E para terminar com aquela que ele apropriou de Leriche:
A saúde é a vida no silêncio dos órgãos (pg. 110, dentre outras).
As novas intermitências da morte, por Amanda Lins (pode ser achado no volume 1 da coletânea de contos do coletivo Leia Mulheres, publicado em 2019 pela Pólen, ou na internet se você der uma busca rapidinho)
Esse é um conto de sete páginas sobre a vida e a morte de uma mulher que, na hora de morrer, conversa um pouquinho com a Morte. A Morte é mulher. A vida também, mas nesse caso o que importa é a morte. A protagonista conversa em primeira pessoa com a Morte que veio busca-la, perguntando se ela não trabalha demais, se não está cansada, se não quer ter dois dedos de prosa antes de fazer o que tem que fazer. A Morte assente e senta para conversar, mas não fala. Quem fala é a viva. Aí a viva fala da sua vida, da sua filha, pergunta se a Morte tem filha e se pergunta se não somos todos filhos da Morte. Fala do trabalho, da promoção, do ex-marido, da mãe, da tristeza, do sofrimento, de amar e não saber amar, cuidar e não saber cuidar. Acima de tudo, fala sem parar sobre a vida porque viveu sem parar: “minha mãe que dizia, filha, se a gente fica parada, o mundo derruba.” É disso que se trata afinal, do trabalho incessante de duas mulheres, uma na vida e outra na morte. A prosa corrida, sem letras maiúsculas, imitando oralidade num monólogo estendido expressa em forma muito bem o tema, e talvez diga algo sobre o que é a vida: uma conversa, sem muita ordem, pontuada, mas sem letra maiúscula, tentando convencer a Morte que não tá na hora ainda.
Indicações de Raul Nunes (IESP/UERJ)
LATOUR, Bruno. Down to Earth: Politics in the New Climate Regime. Cambridge: Polity Press. 2018.
Um dos sociólogos mais atentos à ciência e um dos maiores defensores da inclusão das “coisas” na teoria social, Bruno Latour lança um olhar para a conjuntura dominada pela política fora da Terra. Intensificado a crítica da terceira via à divisão esquerda/direita, o autor argumenta que as classes mais abastadas já perceberam que os dias na Terra estão contados e por isso praticam um negacionismo realista extraterrestre, isto é, não buscam reabilitar a vida terrena da humanidade como um todo, apenas garantir seus privilégios. Contra isso, propõe uma política terrestre, que seja capaz de dissolver as tensões entre o global e o local, uma vez que se percebe que nossas vidas singulares estão incorporadas a uma totalidade comunitária. Pela instigante leitura das tensões sociopolíticas em torno das questões climáticas e ambientais no século XXI, Down to Earth é um livro incontornável para refletir sobre um dos principais desafios que nos espera nesta próxima década.
MUDDE, Cas; KALTWASSER, Cristóbal Rovira. Populism: A Very Short Introduction. New York: Oxford University Press, 2017.
Se a questão ambiental aparece como um dos grandes embates políticos do novo milênio, o que Latour chama de “política extraterrestre” tem sido chamado, na maior parte das vezes, de “populismo de direita”. Cas Mudde e Cristóbal Rovira Kaltwasser tentam definir o que é, o que não é e em que momentos aparece o populismo. Mais jornalístico do que acadêmico, o livro tem uma leitura fluída e é indicado para uma introdução ao tema. Distanciando-se de Laclau, que entende populismo como a própria lógica da política, os autores advogam por uma “abordagem ideacional”, isto é, entendem o populismo como uma ideologia rasa, capaz de se adaptar aos mais diversos substratos, que enxerga uma separação entre o povo e a elite e que advoga pela vontade geral da população. Mais interessante, porém, é como os autores entendem a relação entre democracia e populismo. Ainda que eu considere que o conceito de populismo pouco tem a dizer sobre a conjuntura, seu uso no debate público (e também acadêmico) somado ao fato de não termos palavras para descrever o que enxergamos faz do livro de Mudde e Kaltwasser uma caminhada provocativa pela sociologia política, que abre muitas portas.
KIMMEL, Michael. Angry White Men: American masculinity at the end of an era. New York: Nations Books. 2013.
Meses antes das fatídicas eleições de 2016, o cineasta Michael Moore chocou o mundo com um texto que fornecia 5 razões pelas quais Trump venceria – algo incogitável até então. Não só a vitória aconteceu, como os pontos elencados por Moore se mostraram bastante certeiros. Dentre eles, “a resistência final do homem branco raivoso”. Em que pese o tema ter aparecido como novidade no momento em que o girl power de Hillary Clinton e suas aliadas hollywodianas parecia imbatível, o sociólogo Michael Kimmel havia publicado três anos antes Angry White Men. No livro, através de uma série de entrevistas, o autor faz uma incursão antropológica pela subjetividade dos homens brancos trabalhadores que se sentiram deixados para trás pelas promessas do sonho americano e culpam as mulheres, imigrantes e outras minorias por isso, aderindo facilmente a discursos de extrema-direita.
DECKMAN, Melissa. Tea Party Women: Mama Grizzlies, Grassroots Leaders, and the Changing Face of the American Right. Nova Iorque: New York University Press, 2016.
Se o apoio dos homens à extrema-direita tem se tornado cada vez mais óbvio, o mesmo não se pode dizer em relação às mulheres. Por isso mesmo, o livro de Melissa Deckman é essencial: a autora busca compreender como as mulheres aderem à “nova direita” estadunidense, isto é, ao movimento Tea Party. Deckman identifica duas formas de inserção das mulheres na direita: através do liberalismo econômico ou do conservadorismo social. Uma forma mais original de inserção, porém, teria sido forjada por Sarah Palin, a primeira mulher a ser nomeada a uma chapa presidencial pelo partido Republicano dos EUA – nesse caso, como vice. A autora percebe com precisão o surgimento do maternalismo neoliberal da “ursa cinzenta” que protege seus filhotes das maldosas taxas do governo. O livro de Deckman é mais uma das boas entradas para compreender a ascensão da extrema-direita mundo afora.
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