Indicações de Diogo Silva Corrêa (PPGSP/UVV)
BAYARD, Pierre. Como falar dos livros que não lemos? Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
Juro, esse intrigante livro de Pierre Bayard não é mais um volume de autoajuda devotado à apresentação de dicas sobre como trapacear quando, expostos à necessidade de exibir eruditamente a leitura de um livro que não lemos, somos condenamos ao balbucio vexatório e ao possível embaraço desonroso. O livro, portanto, não é nem um manual de desculpas que podemos dar quando não lemos o livro que supostamente deveríamos ter lido, nem muito menos um guia sobre como buscar resenhas ou outras informações na internet que nos permitam bem falar sobre o livro que sequer abrimos ou vislumbramos uma única vez na vida lá no alto da estante. Não se trata de nada disso. Pierre Bayard, professor de literatura da Universidade Paris VIII, é na verdade o principal e único representante de um “inovador” método de leitura, a saber, o da crítica intervencionista. Ele consiste basicamente em tornar factível, por meio da prosa de um consistente personagem que conduz o livro, hipóteses aparentemente absurdas. Cito exemplos. Em Demain est écrit e Titanic fera naufrage, o personagem de Bayard aborda os casos dos romances de Tom Clancy e Morgan Robertson, que teriam antecipado, respectivamente, os eventos de 11 de setembro e o naufrágio do Titanic. Em ambas as obras, o professor de literatura leva às últimas consequências a crença na capacidade premonitória da literatura. Em L’Enigme Tolstoïevski, de modo distinto, Bayard desloca sua pena para uma outra hipótese presumivelmente disparatada: ele leva a sério a suposição de que os romancistas Tolstoi e Dostoiévski teriam sido, na verdade, uma só e mesma pessoa, e disso tenta extrair todas as suas consequências. Questão essa que já havia trabalhado com outros autores e livros em Et si les œuvres changeaient d’auteur ? Para finalizar, antes de voltarmos ao livro que aqui indico, Bayard também factibiliza a hipótese de realidades múltiplas através de um erudito personagem no livro Il existe d’autres mondes.
Ok, Diogo, mas e o livro Como falar dos livros que não lemos? Nele, Bayard cria um personagem, na verdade um professor de literatura cuja formação familiar de pouco capital cultural lhe teria legado déficits ou lacunas literárias, que seriam motivo de embaraço para ele. Por exemplo, como um professor de literatura da Sorbonne poderia não ter lido todos os tomos de Em busca do tempo perdido de Proust? Como ele não teria nada a dizer sobre o matemático de 32 anos chamado Ulrich que atravessa a inteireza do livro O Homem sem qualidades de Robert Musil? O personagem de Bayard então não apenas confessa ter mentido em vários momentos da sua carreira de modo a evitar situações vexatórias, mas, mais do que isso, expõe toda uma reflexão sobre o que é de fato ter lido um livro. Ter lido é tê-lo feito em sua inteireza, com todas as notas de rodapé? E isso não importa o tempo? Será que nós não sabemos falar mais de um livro da moda, que ainda não tivemos tempo de ler, mas que, dada a quantidade de resenhas ou de conversas de corredores com colegas, sabemos todos os principais argumentos, do que de um livro que lemos há mais de cinco anos e nunca mais voltamos a tocá-lo ou a ouvir falar nele? Quais dos dois livros “controlarmos” melhor? Ainda que saibamos falar muito bem de um livro lido faz mais de oito anos, o que dele falamos é oriundo da nossa leitura ou é de argumentos pegos de empréstimos de comentadores e conversas no café da universidade? Ter lido um livro é apenas ter tido acesso ao conteúdo do texto em sua inteireza? É ter passado os olhos por cada uma de suas palavras? E os livros que, ao relermos, percebemos que, na primeira vez, não o tínhamos, de fato, lido? Ou porque éramos jovens e imaturos ou simplesmente porque, naquele momento, não estávamos com a devida atenção? Ter lido não é também conhecer o conteúdo sabendo situar a obra em seu devido tempo histórico? Ou saber compará-la em relação a outras obras relevantes de seu tempo? Todas essas questões são colocadas no livro que, ao fim e ao cabo, não passa de uma grande reflexão profunda sobre o ato de ler.
Convido vocês então a se aventurarem na leitura do livro que, pelo próprio título, pode isentá-los de toda e qualquer culpa de começá-lo sem precisar ir até o final. Ou mesmo de passar a falar dele apenas via esse pequeno texto cujo objetivo último é, de fato, incentivar a leitura do livro. Claro, não vou terminar essa indicação respondendo a qualquer pergunta infame sobre se eu realmente li o livro sobre o qual escrevi e indiquei, muito menos se li os outros que citei de Pierre Bayard… E quanto a uma possível reflexão, não feita por Bayard, a respeito de como falar dos livros que já lemos (refiro-me, é claro, aos que não sabem direito ou tem dificuldade de fazê-lo), isso eu deixo provocativamente ao encargo do nosso querido Gabriel Peters e seu mais recente heterônimo, o Tio Agonia…
BUBANDT, N., & WILLERSLEV, R. (2015). The Dark Side of Empathy: Mimesis, Deception, and the Magic of Alterity. Comparative Studies in Society and History, 57(1), 5-34. doi:10.1017/S0010417514000589
Dessa vez não vou indicar um livro, mas o artigo de Nils Bubandt e Rane Willerslev cuja tradução já comecei a fazer e deverá sair ainda em janeiro de 2020. Ele une as experiências etnográficas de Bubandt sobre violência política na Indonésia e de Willerslev sobre caça na Sibéria para reelaborar um conjunto de ideias-comuns associadas à noção de empatia. Tradicionalmente vinculada a sentimentos virtuosos ou a modos de relação cooperativos, solidários e altruísticos, a empatia é pelos autores do artigo vista justamente sob a perspectiva inversa, isto é, o seu lado sombrio. Bubandt e Willerslev esmiúçam uma multiplicidade de formas pelas quais a empatia pode ser empregada não tanto para ajudar, cuidar e assistir, mas sobretudo para “manipular, seduzir, enganar e desumanizar”. Todavia, o que poderia simplesmente se restringir a uma meditação sobre o “outro” e efetivamente menos explorado e visível lado da empatia – o que, em si, já não seria pouca coisa –, acaba na sequência do artigo se estendendo para uma belíssima exposição de um conceito mais fulcral e universal para a vida social, a saber, o de socialidade. Na perspectiva dos autores, a empatia, seja em seu lado sombrio ou seja em seu caráter virtuoso, é sempre expressão da socialidade, ou seja, daquilo que permite com que as pessoas sejam dotadas da capacidade de se colocarem no lugar de outra, sem no entanto se fusionarem com ela, mantendo portanto a sua própria individualidade e algum grau de diferenciação. A empatia seria, pois, um modo particular de expressão da socialidade – conceito que, estranhamente no texto de Bubandt e Willerslev, não é nenhuma vez sequer associado a George Herbert Mead, autor que brilhantemente o definia como “capacidade de ocupar uma multiplicidade de pontos de vista ao mesmo tempo”. Apesar disso, o artigo indicado não é menos pertinente e relevante e, sem dúvida alguma, merece a leitura, seja na sua versão inglesa original ou em sua versão futura aqui, no Blog do Sociofilo.
Se tiverem curiosidade e vontade de ver a discussão em formato áudio-visual, recomendo o vídeo a seguir:
https://www.youtube.com/watch?v=gOrigHBoAMU
THOMAS-FOGIEL, Isabelle, Le Lieu de l’universel. Impasses du réalisme dans la philosophie contemporaine, Paris, Le Seuil, 2015, 461 p.
https://blogdolabemus.com/2019/05/16/a-inesgotavel-realidade-por-etienne-bimbenet/
Esse livro de Isabelle Thomas-Fogiel, que conta com a tradução tanto da palestra de síntese que ela própria fez na École Normale Supériéure (ENS) quanto da resenha escrita pelo filósofo Étienne Bimbenet sobre ele (cujos links se encontram acima), é uma obra maior de síntese da paisagem do pensamento filosófico contemporâneo. Juntamente com o livro Choses en soi. Métaphysique du réalisme, do qual Isabelle também participa, ele deslinda um belo resumo das filosofias continental e analítica atuais. E engana-se quem pensa que tal livro tem sua relevância restrita apenas aos filósofos, porque, ao traçar um magnífico diagnóstico panorâmico do campo filosófico de hoje, ele também permite melhor entender os desafios da sociologia e da antropologia hodiernas. Um exemplo particularmente evidente se dá pela tentativa comum, na filosofia, na antropologia e na sociologia, de superação de um epistemologismo kantiano e de um retorno à ontologia. A virada ontológica na antropologia e o realismo especulativo na filosofia, por exemplo, são decerto sintomas de um mesmo movimento. E a aposta do livro de Thomas-Fogiel é que esse movimento advém de um esforço dos intelectuais hodiernos de proporem um contra-modelo ao dispositivo da “perspectiva”, cuja origem pode ser encontrada no período renascentista. Segundo a autora, esse contra-modelo consiste, em poucas palavras, em não mais reduzir o mundo ao homem – ou ao ego transcendental e suas representações, que se tornam a medida de todas as coisas –, mas tentar, no limite do possível, submeter o homem ao dado, àquilo que lhe é indiferente e que ele, o homem, antes de tudo, recebe.
Diferentemente da década de 1960, quando filósofos, antropólogos e sociólogos se esgoelavam para descentrar do sujeito e trazer à vista a facticidade própria à dimensão linguisticamente produzida ou social e culturalmente motivada da realidade ou do mundo, o escopo, segundo Thomas-Fogiel, do pensamento contemporâneo é, nos dias de hohe, inverter tal relação de subordinação, apresentando uma nova relação assimétrica que submete não tanto mundo ao sujeito (seja ele individual ou coletivo) e às suas representações, mas o sujeito à alteridade irredutível. O que há de comum em relação aos filósofos contemporâneos, afirma a filosofa francesa, é a ênfase, cada qual ao seu modo, na relação de dependência e submissão do sujeito a uma alteridade que ele não pode fazer outra coisa além de receber. Tal seria, segundo a professora de filosofia de Ottawa, a estrutura essencial do realismo contemporâneo.
No entanto, Isabelle Thomas-Fogiel não para por aí. A autora não se contenta em diagnosticar o que ela considera como o denominador comum do pensamento contemporâneo. Ela própria propõe, em seus termos, um contra-modelo da perspectiva, que ela concebe como algo capaz de não recair em um universalismo ingênuo, nem em um relativismo incapaz de fazer outra coisa além de afirmar a singularidade das perspectivas. Ela propõe que a filosofia busque um ponto de vista que parta do aqui e agora, mas que seja capaz de ir além de “seu solo, de seu contexto, para criar um mundo comum, habitável por todos, em poucas palavras, para criar o lugar do universal”. A autora propõe então que a universalidade se mantenha como finalidade, como ideal regulativo da filosofia, sendo o filósofo, antes de mais nada, um arquiteto do universal. No entanto, como manter o universal como telos sem descambar para um universalismo simplório? Thomas-Fogiel propõe dois procedimentos teóricos que servem tanto para a filosofia quanto, penso eu, para a sociologia e a antropologia, a saber, os de “pluralização perspectiva” e “ilimitação do limite”. Eles visam dar uma resposta ao problema de como produzir um ponto de vista que, embora nunca universal, possa ser mais universalizável do que outro. Para isso, a autora argumenta que o filósofo, esse arquiteto do universal, precisa realizar um esforço progressivo de integrar em seu próprio “aqui” outros pontos de vista, outros lugares e antecipar outras perspectivas.
Thomas-Fogiel deixa claro que colocar como objetivo do conhecimento o universal não significa aprisionar-se a um procedimento fracassado, mas tão somente a adesão a uma regra metódica precisa cujo objetivo maior é o estabelecimento de um critério de diferenciação possível entre variadas perspectivas e “versões” da realidade. Para irmos na direção do concreto: em que critério podemos nos basear para dizer que a versão apresentada por terraplanistas ou por negacionistas climáticos é menos verdadeira do que aquela de seus opositores, isto é, do que aqueles que defendem que a Terra é redonda e que há, sim, um processo radical de mudanças climáticas? O que a professora da universidade de Ottawa afirma é que precisamos de uma medida que permita comparar o grau de universalidade de uma teoria ou proposição. Mesmo que reconheçamos que nenhuma hipótese, teoria ou proposição é, em si, universal, isso não quer dizer que devamos abdicar de todo e qualquer critério que permita com que possamos dizer qual hipótese, teoria ou proposição seria mais universalizável. Por exemplo, cabe perguntar: quais teorias, proposições, versões ou hipóteses excluem mais do que integram? Quais relegam mais do que consideram? O que a autora argumenta é que quanto menos uma teoria ou proposição for capaz de pluralizar perspectivas, de ilimitar o limite, mais ela carecerá de universalidade e, por essa razão, poderá ser descreditada. A autora então propõe a retomada da ideia de verdade, sendo esta definida pelo maior ou menor grau de universalidade, isto é, pela maior ou menor capacidade de englobar, incorporar, integrar, e não de rejeitar, excluir. Por isso, segundo Thomas-Fogiel, o que o filósofo, enquanto arquiteto do universal, deve sempre fazer é “incabar” (inachèver), produzir um alargamento ou ilimitação constante de limites, uma multiplicação de possibilidades, pluralização dos “aqui” e integração de outros pontos de vista.
O que importa dessa engenhosa proposta teórica do livro de Thomas-Fogiel, expressa sobretudo em suas últimas páginas, é que ela oferece um modelo que encontra uma via média entre o perspectivismo absoluto e o universalismo ingênuo que confunde o universal com o universalizável. Seja para pensarmos no universo epistêmico da antropologia e da sociologia, seja também como resposta a um mundo cuja dispersão ou desconstrução de critérios universalizáveis, uma vez metabolizadas pelo senso-comum, levaram à pós-verdade e às fake-news, o livro da filósofa francesa ajuda, como poucos, a abrir um caminho teórico consistente e, ao mesmo tempo, inovador.
Indicações de Marília Bueno (UFRGS)
APOSTOLOS, Doxiadis e PAPADIMITRIOU, Christos. Logicomix. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.
“Eu primeiro gostaria de perguntar que método deve ser usado para a sua decisão. Pensem a respeito. Bom, pra começar, espero que todos concordem que devemos usar instrumentos racionais para tanto! Mas o que isso significa? Quais seriam os tais instrumentos da Razão? Para respondermos verdadeiramente a essa questão, devemos fazer como os gregos e partir do básico, perguntando: o que é a Lógica? É exatamente a essa pergunta que eu gostaria de responder aqui hoje” (p. 33).
Com essas palavras, Bertrand Russell dá início à palestra ministrada por ele “numa universidade norte-americana” sobre o papel da lógica nas questões humanas no dia 4 de setembro de 1939 e que conduz o livro cuja leitura estou recomendando. Essas palavras bem poderiam estar em um livro de filosofia baseado em um curso ou conferência como outro qualquer; mas neste, elas estão divididas entre balões que apontam para um Russell pictórico. Sim, o livro que representa as aventuras de Bertrand Russell em busca da definição da verdade é também uma incrível história em quadrinhos.
A narrativa é conduzida em três camadas: em primeiro lugar, há a palestra de Russell sobre a Lógica em um auditório lotado – em sua maioria por manifestantes contra a entrada dos Estados Unidos na segunda guerra mundial – três dias depois da invasão da Polônia pela Alemanha nazista. Nessa palestra, Russell descreve sua empreitada da vida inteira em busca dos fundamentos de um conhecimento irrefutável. A segunda camada representa os fatos narrados: a jornada que se inicia com o pequeno Bertie chegando à mansão de seus avós, onde passaria o resto da infância – e onde a sua curiosidade irrefreável o leva a descobrir a paixão pela ideia da lógica matemática, que seria fonte de suas motivações até o fim da vida –, e vai até o senhor de 67 anos que buscava transmitir aos manifestantes na plateia a importância da razão na tomada de decisões.
Nessa segunda camada – é claro, a mais importante do livro –, acompanhamos os principais acontecimentos da vida do filósofo enquanto conhecemos sua obra e os desdobramentos dela. Nela, conhecemos todo o contexto de surgimento da filosofia analítica, por meio de diálogos e encontros (mesmo que alguns deles nunca tenham efetivamente ocorrido na vida real) com grandes nomes da época; entre eles, destaco a inspiração que representou, para Russell, a escrita conceitual de um Gottlob Frege baixinho e irritadiço, a parceria com Alfred Whitehead na elaboração do Principia mathematica e a mentoria de um jovem Wittgenstein completamente neurótico. Em relação a este último, que começa como pupilo de Russell mas acaba divergindo completamente dele em pontos fundamentais, acompanhamos também um pouco do desenvolvimento das ideias que o levaram a redigir seu Tratactus e a virá-lo de ponta-cabeça anos depois. Vemos também a influência que as obras de Russell e Wittgenstein exerceram sobre as formulações do breve Círculo de Viena.
É também nessa camada que acompanhamos a angústia de uma jornada em que o herói é, todo o tempo, perseguido pelo fantasma da loucura, em cujo limiar sua busca obsessiva esbarra tantas vezes que pode nos levar a questionar sobre em que medida as duas coisas podem caminhar separadas. Do ente misterioso que o assombrava na infância (sobre o qual não posso dizer mais do que isso para não dar spoiler) até os filhos de seus amigos, passando por boa parte dos filósofos e matemáticos com quem Russell dialoga ao longo da história, tudo sugere que a obsessão pela racionalidade absoluta está sempre de mãos dadas com a insanidade.
Há ainda uma terceira metacamada, em que os próprios autores, desenhistas e consultores do livro discutem suas realizações, explicitando suas escolhas narrativas, seus impasses e, vez ou outra, explicando algumas ideias necessárias para a compreensão do enredo.
Com esse livro, os autores conseguiram executar uma façanha com a qual não vi nenhum paralelo até hoje: como narrativa das aventuras e desventuras do protagonista em busca de realizar o propósito de sua vida, ele oferece uma narrativa tão envolvente que você pode, sem perceber, terminar de ler suas mais de trezentas páginas em uma tarde, mesmo que você não tenha lá grande interesse ou um conhecimento profundo da obra de Russell. E como obra filosófica, digamos assim, ele também cumpre o papel de apresentar, de forma simples porém bastante rigorosa, as principais ideias e etapas do pensamento do autor. E com isso, mostra que a busca do conhecimento pode ser a motivação de uma jornada tão empolgante quanto a vingança ou a glória. E, é claro, não menos permeada por vitórias, derrotas, alegrias e sofrimentos.
DIDEROT, Denis. O sobrinho de Rameau. São Paulo: Editora Unesp, 2019.
Eu sempre conheci Denis Diderot por ser um dos maiores expoentes do iluminismo francês e, é claro, por ter sido, junto com D’Alambert, responsável pela criação* da Enciclopédia como a conhecemos hoje. A ideia de ter proposto a empreitada homérica de organizar e publicar todo o conhecimento sobre as ciências, as artes e os ofícios produzidos pela humanidade até então, produzindo assim uma obra com explicações racionais simples, acuradas e abrangentes o suficiente para que qualquer pessoa pudesse aprender o básico sobre qualquer coisa – de forma científica, ou seja, isenta de viés religioso – já me parecia extraordinária o suficiente para um homem só. Qual não foi então a minha surpresa ao descobrir que ele era também autor de uma “obra que fascinou Goethe, Hegel, Engels e Freud, alcançando um status literário-filosófico de destaque”*, da qual eu nunca havia ouvido falar?
Após ler O sobrinho de Rameau o que eu posso dizer a respeito é: não é pra menos. A obra representa um riquíssimo pilar da obra de Diderot enquanto discussão dos principais elementos que povoavam a cena cultural e filosófica da época. De acordo com Daniel Garroux, autor da apresentação na edição brasileira, Diderot foi obrigado a se comprometer a não publicar nada que fosse contrário à religião e aos bons costumes, posto que já havia sido encarcerado por ter publicado sua Carta sobre os cegos para uso dos que veem (p. 7). Como cuidado para que isso não voltasse a acontecer, o filósofo passou a dividir sua obra entre aquela que seria publicada tendo em vista o público em geral – basicamente a sua Enciclopédia –, algumas para um “público mais seleto”, em sua maioria residente no exterior, e uma mais radical, que deveria ser publicada apenas após sua morte (p. 8). E é nessa parte de sua obra que encontramos a obra recomendada por mim, por Goethe et. alii.
A obra é uma ficção na qual são representados personagens reais. O sobrinho é sobrinho de Jean-Philippe Rameau, eminente compositor e teórico musical da França setecentista. Aqui, o sobrinho do musicista aparece como uma das pessoas engajadas em um debate filosófico entre dois personagens alegóricos – Eu e Ele. Nesse diálogo, Eu representa o próprio Diderot, enquanto que Ele é colocado por Diderot na história para debater consigo mesmo uma série de questões filosóficas. Anos antes da Revolução Francesa, Eu e Ele discutem modos de vida e padrões de conduta de um mundo que veria sua derrocada ainda naquele século, num processo do qual Diderot certamente foi parte importante.
Na obra, o protagonista está perdido em suas reflexões quando é interceptado por essa figura peculiar representada por Ele, um interlocutor com ideias quase sempre opostas, com quem trava um diálogo, como numa demonstração de que o fluxo das reflexões de um filósofo precisa, por vezes, ser interceptado e confrontado consigo mesmo, questionando desse modo as próprias formulações a fim de evitar que elas façam sentido apenas na medida em que se confirmam tautologicamente. Embora o diálogo de Diderot com o sobrinho de Rameau não seja exatamente uma busca pela conclusão comum por meio de argumentos, como proposto por Platão, ainda assim fica sugerido o imperativo de que as ideias precisam sempre ser colocadas para conversar umas com as outras.
O modo como as relações e condutas da aristocracia são descritas por Ele, uma figura bufona e excêntrica, uma “mistura de altivez e baixeza, de bom senso e desatino”, que frequentemente vivia sem teto e dependendo da bondade de conhecidos, é uma crítica em forma de escárnio a uma estrutura social que Diderot sonhava em ver ruir.
Um a um, os dialogantes passam por uma gama, com o perdão pelo trocadilho, quase enciclopédica de temas – embora de forma às vezes um pouco caótica. Temas como os protestos contra a ordem existente, a felicidade, a ideia de uma dignidade presa que está presa à natureza do homem e que nada pode sufocar, a figura do gênio, o desprezo de si, entre muitos outros, são sucessivamente colocados na mesa. Com isso, Diderot não discute com profundidade nenhum deles. Não é nesse diálogo, portanto, que encontraremos a compreensão plena das ideias que o autor pode ter proposto. Ele serve, antes, ao propósito de pintar um quadro mais ou menos coerente da temática filosófica e do ambiente cultural francês de sua época. Desse modo, Diderot deixou registrada, para a posteridade, sua posição estritamente contrária à de seus detratores e, antes, detratores da própria filosofia, que, num ataque à Enciclopédia e a toda forma de crítica moral e científica do Iluminismo, tentavam inutilmente remendar um dique que estava prestes a ceder, inundando de ideias novas o velho mundo.
Indicações de Estevão Bosco (USP)
Ming Xie (ed.), The Agon of Interpretations: Towards a Critical Intercultural Hermeneutics. Toronto: University of Toronto Press, 2014.
Este livro reúne um conjunto de ensaios de hermeneutas e fenomenólogos reconhecidos em torno dos desafios ontológico e epistemológico que a experiência intercultural nos coloca. Convencionalmente, a hermenêutica nos oferece uma ontologia da experiência ancorada no desvelamento da pré-estrutura da compreensão, enfatizando a natureza historicamente condicionada daquilo que compreendemos. Condicionada porque encontramo-nos previamente encarnados em determinada situação hermenêutica, a qual herdamos, fundamentalmente, da tradição cultural pelo simples fato de adquirir uma linguagem. Assim, como indicado no subtítulo, o desafio reside em vincular internamente uma hermenêutica que privilegia aspectos intraculturais de nossa experiência do mundo com aspectos interculturais. A hermenêutica intercultural vislumbrada é também crítica na medida em que, no contexto da relação entre Self e Outro, o poder nos revela a existência prévia de assimetrias de valor entre as culturas (estado pós-colonial do mundo, por exemplo) e o potencial normativo e epistêmico do qual o encontro com o Outro se reveste. Por vias distintas, cada um dos ensaístas nos mostra o lugar que o Outro ocupa na constituição intra/intercultural do Self e, especialmente na Parte III, explora as implicações epistemológicas daí decorrentes.
Gerard Delanty. The Cosmopolitan Imagination: The Renewal of Critical Social Theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.
Neste livro, Delanty deslinda as dimensões da imaginação cosmopolita a partir de uma abordagem imanente-transcendente, vinculando pesquisa social, teoria social e política com sua constante interrogação da modernidade. Sua imaginação sociológica abrange aquilo que o cosmopolitismo invoca no mundo, isto é, diversidade cultural (pluralidade), interconectividade (interação), práxis (transcendência imanente) e autotransformação. O ponto de partida é o reconhecimento de que, como consequência da globalização, o cosmopolitismo se tornou o impulso da modernidade. A concepção de cosmopolitismo por ele formulada é crítica na medida em que busca apreender o potencial imanente de autotransformação da experiência intercultural. Assim, no lugar de tomar como cosmopolita a transformação do sujeito que, invariavelmente, acompanha a globalização, Delanty enfatiza a formação do sujeito.
A teoria social crítica cosmopolita que nos é apresentada, compreende cinco dimensões. Primeiro, o cosmopolitismo é concebido como transcendência imanente que se dá no acontecer da experiência entre Self, Outro e mundo. Desta maneira, caracteriza uma condição de finitude da experiência intercultural, que potencialmente leva a processos coletivos de aprendizagem. Segundo, na medida em que essa ontologia do cosmopolitismo crítico visa apreender mudanças micro-sociológicas, que ocorrem nas atitudes e orientações dos indivíduos, e dinâmicas macro-históricas e tendências da sociedade moderna no contexto de pluralidade cultural e interconectividade, o objeto da teoria social crítica cosmopolita é definido como o espaço discursivo de traduções, diálogo e troca, no interior do qual sociedades e modernidades interagem e a formação de sujeitos ocorre. Quarto, o núcleo moral e político do cosmopolitismo é a comunicação intercultural, aqui compreendida como raciocínio deliberativo por meio do qual terceiras culturas (direitos humanos e democracia, por exemplo) podem ser criadas e novas visões de ordem social podem surgir. Por fim, reafirmando que a modernidade é múltipla, inter-civilizacional e impulsionada pela lógica da tradução, o cosmopolitismo é, necessariamente, pós-universal: ele não possui conteúdo prévio; ele figura como expressão possível do trato comunicativo de particularismos. Assim, a imaginação cosmopolita oferece uma visão de ordem social descentrada ética, moral e politicamente. Ao reconhecer a existência de projetos cosmopolitas distintos, enraizados em modernidades diferentes e entrelaçadas, essa concepção pós-universal de cosmopolitismo invoca uma reinterpretação da história à luz de um presente e futuro compartilhados.
A Imaginação cosmopolita não apenas esclarece a relevância do cosmopolitismo para a pesquisa sociológica, mas também, e sobretudo, estabelece as bases de uma abertura da teoria social crítica para a globalização, indo além da preocupação com a dominação e a emancipação no interior das fronteiras ocidentais. De uma perspectiva cosmopolita, transcendência imanente significa, primeiro, que cada cultura está inscrita em uma experiência histórica particular e carrega aspirações normativas e políticas correspondentes. Segundo, que as ordens transitivas particulares de cada cultura não estão apartadas umas das outras, elas estão histórica e assimetricamente entrelaçadas. A implicação disso reside em que tais aspirações podem ter um alcance maior e precisam ser negociadas e inclusivas do Outro.
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