Por Philippe Sansonetti , 19 de março
Tradução Diogo Silva Corrêa
Revisão Marília Bueno
Dificilmente acredita-se em pragas quando elas caem sobre a sua cabeça.
– Albert Camus, A Peste
Este texto foi extraído da palestra dada por Philippe Sansonetti no Collège de France, em 16 de março de 2020*.
A Covid-19 é uma epidemia; é urgente e vital para a nossa sociedade estar convencida disso. Não é ainda tarde demais, mas o tempo está esgotando-se. Este é o terceiro surgimento de um coronavírus em menos de vinte anos. Houve o SARS em 2003, o MERS em 2012 e agora o Covid-19 (doença do vírus Corona). Em cada um desses episódios, as pessoas se preocuparam, depois se tranquilizaram, e pouca coisa aconteceu depois para prevenção e antecipação, em termos de terapêutica e vacinas. Hoje, na ausência de tratamento e vacina, a evolução dessa epidemia está nas nossas mãos.
Charles Nicolle (1866-1936), que foi professor no Collège de France e diretor do Instituto Pasteur de Tunes, escreveu em Destin des maladies infectieuses (1933):
Haverá, portanto, novas doenças. É um fato fatal. Outro fato, igualmente fatal, é que nunca seremos capazes de detectá-las desde a sua origem (…). O conhecimento das doenças infecciosas ensina aos homens que eles são irmãos e solidários. Somos irmãos porque o mesmo perigo nos ameaça, e somos solidários porque o contágio vem mais frequentemente de nossos semelhantes. Desse ponto de vista, somos também, independentemente dos nossos sentimentos para com eles, solidários para com os animais, especialmente com os animais domésticos.
Era uma antecipação de todos os fenômenos emergentes que iriam ocorrer no século XX e agora no século XXI.
O que é o coronavírus?
Os coronavírus são uma imensa família de vírus, que são os vírus RNA (ácido ribonucleico) “positivos” de cadeia simples, o que significa que esse RNA se traduz diretamente em proteínas que formam tanto a estrutura como toda a engenharia de replicação e multiplicação do vírus. É uma família muito grande, com a qual vivemos permanentemente, uma vez que os Alpha-coronavírus estão presentes nos mamíferos, incluindo os humanos, e costumam causar, em particular nas crianças, doenças respiratórias e intestinais benignas: desse ponto de vista, não há aqui nada de novo em termos da etiologia desse tipo de doenças. O problema é que outros coronavírus dessa família, os Beta-coronavírus, estão bastante adaptados aos mamíferos, em particular ao morcego, que é o seu reservatório primário, mas pouco adaptados aos humanos, de modo que quando passam para estes últimos, podemos ver colisões e danos, ligados a esse encontro entre um microrganismo e um hospedeiro que não estão adaptados um ao outro. Outros membros dessa família, Gama e Delta-coronavírus, estão presentes em aves e peixes, e pelo menos por enquanto não nos preocuparam em termos de emergência.
Identificação do vírus
Nós devemos também apontar os aspectos positivos do que está acontecendo hoje, aspectos que às vezes ficam em segundo plano. O primeiro deles é a velocidade muito pouco habitual com que esta epidemia foi inicialmente detectada na cidade de Wuhan na China, assim que os médicos notaram esses casos bizarros de pneumopatia, alguns dos quais já eram graves. O diagnóstico, que até dez ou vinte anos atrás teria levado semanas ou mesmo meses, porque o vírus tinha que ser isolado e identificado, foi estabelecido por métodos moleculares em poucos dias – se não horas –, graças ao progresso da chamada nova geração de sequenciamento profundo e bioinformática, que permitiu identificar imediatamente esse RNA estranho nas amostras desses indivíduos infectados e desenvolver em tempo real o sistema de amplificação específico para esse vírus, de modo a produzir um diagnóstico muito rápido e iniciar estudos epidemiológicos. Isso deve ser comparado com os meses ou anos que foram necessários para identificar o vírus da AIDS há trinta anos, quando era necessário passar por métodos virológicos clássicos, que consistiam em cultivar o vírus. O diagnóstico molecular revolucionou a situação e, apesar dos atrasos iniciais no conhecimento e comunicação sobre essa epidemia, podemos prestar homenagem aos médicos e biólogos chineses que conseguiram identificar o vírus muito rapidamente.
A propagação pandêmica do vírus
Passamos rapidamente de clusters para uma situação epidêmica nacional: o problema já não é o bloqueio de fronteiras ou outras ideias arcaicas. As fronteiras estão nas portas do nosso apartamento.

14 de março de 2020: Mundo (123 países), 145.000 casos e 4026 mortes.
O mapa da extensão dos surtos ativos da pandemia mostra uma espécie de faixa que corresponde às latitudes das nossas regiões europeias (e de regiões correspondentes do hemisfério sul, por exemplo, a Austrália), e por enquanto relativamente poucos casos nos países do sul, nas zonas intertropicais. Alguns atribuem esse efeito ao clima; seria desejável que fosse assim, pois poderia significar que com “temperaturas mais quentes na primavera”, como diz Donald Trump, as coisas podem melhorar – mas essa não é uma base científica sólida. Há provavelmente outras razões, porém, que ainda não estão claras, e eu voltarei a isso.
Então esta é realmente uma pandemia: não estamos mais procurando o caso zero e o reconhecimento das cadeias de transmissão.
Os parâmetros da epidemia
Quais são os seus parâmetros? O R zero (taxa de reprodução básica) é o número médio de infecções secundárias produzidas quando um indivíduo infectado é introduzido numa população onde todos os indivíduos são suscetíveis. Se o R zero for inferior a 1, não há situação epidêmica; assim que for superior a 1, há uma epidemia. No caso do Covid-19, este número está entre 2 e 3. Esta é, portanto, uma situação epidêmica típica. Para a gripe espanhola de 1918-1919, o R zero era de 2, 3; o da tuberculose é 10, portanto extremamente contagiosa; o do sarampo é de 12 a 18.
O período de incubação é de 5 a 6 dias. No entanto, há incubações mais longas, até 14 dias, daí o tempo de isolamento necessário. O intervalo intergeracional, ou seja, o tempo entre o momento em que uma pessoa infectada encontra uma outra pessoa que nunca antes teve contato com o vírus (virgem de todo tratamento) e o momento em que esta última pessoa desenvolve a doença, é de 4 a 7 dias. O fato desses dois parâmetros serem quase idênticos mostra que os doentes são contagiosos desde o início, ao contrário do que aconteceu com a SARS em 2003, quando o contágio só ocorreu com o pico da viremia[1] após vários dias de evolução. Agora, pelo contrário, o vírus é altamente contagioso: as pessoas transmitem enquanto ainda estão assintomáticas, ou começam a ter pequenos sintomas que não as preocupam, ao passo que já se devem isolar o mais rápido possível.
A taxa de ataque (o número de indivíduos recém-infectados em comparação com toda a população não infectada) é elevada (muito superior à da gripe sazonal). Por definição, ainda não temos números sobre a porcentagem da população francesa que pode realmente estar infectada[2].
Em formas graves, que são cerca de 10 a 15% dos casos, as internações são em média de 11 +/- 4 dias (entre 7 e 15 dias), o que ameaça, como sabemos, o nosso sistema de saúde.
É, portanto, uma doença com elevado potencial epidêmico, com grande pressão sobre o sistema de saúde, e foi isso que levou as autoridades a implementarem estratégias para mitigar a evolução da doença. Isto é perfeitamente justificado.
Taxa de mortalidade

A taxa de mortalidade é relativamente baixa. Quando fizermos uma avaliação completa desta pandemia, muito provavelmente descobriremos que foi de 1-2%. Parece maior nos períodos de aceleração da epidemia, como acontece atualmente na França, não necessariamente porque as doenças são mais graves neste período, mas simplesmente porque estamos correndo atrás dos números: os números de mortalidade são indiscutíveis, enquanto os números de pessoas infectadas com o vírus são sempre muito mais elevados do que o que podemos observar. No Reino Unido, os especialistas dizem que há provavelmente 10 vezes mais pessoas infectadas do que casos confirmados, especialmente porque não há dúvida de que a grande maioria dos casos são formas leves da doença, o que dificulta consideravelmente a avaliação da taxa de mortalidade. No entanto, a taxa de mortalidade pode aumentar nessa situação que estamos passando com a sobrecarga do sistema de saúde e a disponibilidade de leitos de reanimação. 1% de mortalidade e 10% de casos graves não são estatisticamente enormes, mas em relação ao número de casos de infecção, dada a transmissibilidade e infecciosidade do vírus, pode começar a fazer valores absolutos significativos que podem colocar em perigo o nosso sistema de saúde. Isso é o que legitima esta política de mitigação.
Migração interespécie e a responsabilidade humana
O nome coronavírus vem da Proteína S (S de spike), que assegura a ligação com o receptor e que tem uma forma de coroa na superfície do vírus, particularmente no tecido pulmonar.
A árvore filogenética mostra que a SARS-CoV-2, o nome oficial do vírus Covid-19, é muito semelhante ao do SARS de 2003 e do MERS de 2012; e as doenças são muito semelhantes. A origem é próxima: os morcegos são o reservatório do coronavírus. O domínio é, portanto, relativamente bem conhecido, e o progresso feito em doenças anteriores pode ser aplicado, embora infelizmente ainda não tenha sido desenvolvida nenhuma vacina ou tratamento.
O Covid-19 é um típico caso de emergência infecciosa que se deve à migração de uma espécie para outra (“zoonose”). Há décadas assistimos a essas zoonoses, particularmente em regiões tropicais (o Ebola, por exemplo): são vírus adaptados às espécies animais que passam para a espécie humana; disso podem surgir vários cenários.
O vírus pode estar mal adaptado e ter pouca capacidade de sofrer mutações e, portanto, de se adaptar e se estabilizar. Nesse caso a infecção humana será abortiva: a adaptação será pobre e não haverá transmissão de um humano para outro; no primeiro indivíduo em questão, o processo será interrompido. No entanto, o processo pode dar origem a doenças potencialmente graves, como foi o caso da gripe aviária H5N1, devido a casos de transmissão direta de aves para humanos, com uma taxa de mortalidade muito elevada – de cerca de 60% – mas sem transmissão de humano para humano.
Outros vírus, por outro lado, estão mais bem adaptados desde o início a essa passagem dos animais (especialmente mamíferos) para os humanos, e a enzima que replica essa vertente do RNA comete muitos erros, o que gera mutações que aumentam as chances de adaptação do vírus. Esse é o caso do SARS-CoV-2, que passou com relativa facilidade dos morcegos para os humanos através de algum mamífero, um reservatório intermediário. É, portanto, um caso típico. A doença foi mais grave e a taxa de mortalidade mais elevada no SARS (10%) e no MERS (35%). Aqui, o vírus provoca patologias menos graves, mas temos uma espécie de equilíbrio (trade-off): sendo menos virulento, ele é mais transmissível. Esse equilíbrio é extremamente importante para definir o perfil da doença.
O reservatório natural são certas espécies de morcegos: é impressionante ver até que ponto esses animais são capazes de transportar esses vírus emergentes, tais como o Corona. Esse é provavelmente o caso do Ebola e do vírus Nipah na Malásia, que surgiu no final dos anos 1990: como o comportamento humano muda as condições ecológicas, esses morcegos entram em contato com animais que são, eles próprios, suscetíveis a essa migração interespécie e a replicar o vírus. Cria-se então uma zona de risco em torno dos seres humanos, uma vez que qualquer contato humano com estes animais do reservatório pode eventualmente levar a mais uma migração, desta vez para a espécie humana, e à ocorrência da doença. No caso da SARS de 2003 considera-se, com fortes suspeitas, que o animal intermediário, para além do morcego, era a civeta, um mamífero particularmente comum na Ásia (originalmente nos Himalaias); para o MERS, era o camelo. Isso não é exclusivo dos vírus Corona. Para o Ebola, o ciclo provavelmente passa pelos grandes símios. Uma vez realizada a migração interespécie, o problema todo passa a ser a transmissão de humano para humano.

Para o SARS-CoV-2, imagina-se que o animal seja o pangolim (anteriormente conhecido como tamanduá), cujo vírus foi considerado, a partir de numerosos estudos, muito próximo do que se vê nos seres humanos; e o que mostra que essas doenças emergentes são causadas pelo comportamento humano é o tráfico desses animais: estima-se que cerca de um milhão de pangolins se desloquem do seu território africano para a Ásia, porque as populações asiáticas gostam tanto da sua carne como das suas escamas. O componente humano desempenha um papel em todas as doenças emergentes: esses pequenos animais foram vendidos numa tenda de um mercado de peixe em Wuhan, e foi lá que as pessoas foram infectadas.
Quando voltámos após a epidemia de SARS aos mercados de venda de civetas, descobrimos que 70% dos vendedores eram soropositivos com coronavírus. Assim, vemos que existem zonas de passagem permanentes para a migração interespécie, muitas vezes de uma só vez, porque o vírus sofreu mutações, porque adquiriu um pequeno fragmento adicional de genoma e assim se tornou perfeitamente adaptado à migração para humanos. Somos, portanto, constantemente ameaçados por essas doenças emergentes. São doenças do antropoceno: em sua maioria, se não exclusivamente, estão ligadas à tomada do planeta e às marcas que o homem deixa nele. O que é válido para o clima, para o meio ambiente, é igualmente válido para as doenças infecciosas, especialmente as emergentes, e os três estão ligados.
Há, portanto, uma história em três episódios: 1) esses acidentes de migração interespécie, 2) o eventual transbordamento, se a migração cumpre certas especificações e o homem pode ser infectado e transmitir a outros indivíduos; e 3) a explosão pandêmica, devido aos transportes intercontinentais.

(4 bilhões de passageiros aéreos em 2019, IATA)
O mapa dos focos de infecção e o mapa dos voos aéreos intercontinentais (cerca de 4 milhões em 2019) são 100% correspondentes. Fica assim claro o papel que o transporte desempenha na transmissão e expansão dessas epidemias, que depois se transformam em pandemias. Depois, pode haver aspectos ambientais, de temperatura para as regiões do sul e talvez também um atraso no diagnóstico, mas a comparação entre voos e focos de infecção é impressionante.
Ecopatologia dos beta-coronavírus
O receptor do SARS-CoV-2 e 1 coronavírus é uma enzima que se liga à superfície das células, notadamente pulmonares, pneumócitos e endotélio, do endocárdio, do rim, do fígado e do intestino. É surpreendente que um vírus tenha selecionado como receptor a enzima de conversão angiotensina II, uma enzima importante na regulação da pressão arterial: é a enzima que assegura a pressão vascular, que gera a pressão arterial.
É o que pode explicar a gravidade da doença: pneumopatia, eventualmente grave, numa forma última que é a síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), observada em indivíduos bastante idosos, a partir dos 60 anos de idade, e naqueles com comorbidades crônicas: diabetes, hipertensão, insuficiência cardiorrespiratória, imunossupressão crônica, levando ao edema e à inflamação destrutiva dos alvéolos pulmonares, implicando a necessidade de reanimação. O que é afetado pelo vírus é a barreira alvéolo-capilar, ou seja, a zona de troca de oxigênio entre as células do alvéolo pulmonar, que asseguram essa difusão de oxigênio do ar inalado, e as hemácias dos capilares pulmonares. Se esse sistema é alterado, são observados problemas respiratórios que eventualmente irão exigir reanimação.
Os sinais dessa forma agravada da doença são sinais inflamatórios clássicos, o que chamamos de “tempestade de citocina”: um aumento significativo das citocinas e quimiocinas pró-inflamatórias. O que é menos clássico é essa SDRA com a destruição da barreira alvéolo-capilar; isso raramente acontece, mas é aí que devemos intervir o mais rapidamente possível para fornecer oxigênio ao corpo. A SDRA também pode ocorrer em indivíduos mais jovens e em recuperação, o que pode estar relacionado com a resposta imunológica.
As respostas imunes adaptativas, específicas ao vírus, ainda são pouco conhecidas. O que se sabe é que este vírus é bastante vicioso: ele tende a suprimir essa resposta imunológica sem que se saiba o porquê ou com que efetores: ele provavelmente “aprendeu” a fazê-lo nos morcegos.
O futuro está nas nossas mãos
O futuro dessa pandemia de Covid-19 está nas nossas mãos. Temos à nossa disposição a prevenção e o tratamento sintomático de formas graves. Isso é tudo o que temos neste momento. O modo de prevenção atual baseia-se nesta nova noção de distanciamento social (cada pessoa a um metro de distância da outra, etc.) e de higiene individual das mãos, a respeito do qual é preciso insistir: a contaminação pode ocorrer através da exposição a gotículas emitidas por pacientes doentes que espirram ou tossem; mas parece que, na grande maioria dos casos, as mãos contaminadas são o verdadeiro vetor, seja por meio do contato com um doente infectado, seja indiretamente por meio do contato com uma superfície na qual essas gotículas foram depositadas e onde o vírus parece ser capaz de sobreviver durante várias horas. Portanto, sem abraços, sem apertos de mão e higiene absoluta das mãos. Também evite colocar as mãos no rosto até que se tenha lavado ou usado o gel hidroalcoólico. É preciso ter muito cuidado com isso e estar constantemente atento para proteger a si mesmo e à coletividade.
Os objetivos são achatar o pico da epidemia de modo a preservar o nosso sistema de saúde e não entupi-lo com pessoas gravemente doentes. O problema é que as medidas tomadas até agora têm sido claramente insuficientes, como vimos na Itália. Devemos, portanto, avançar para o isolamento, o confinamento domiciliar, o que faz sentido dada a dinâmica intrínseca da epidemia. Devemos estar cientes da gravidade da situação. Podemos sempre assumir que isso não nos vai acontecer. A única boa notícia é que as crianças de 0 a 9 anos não são afetadas. Mas o efeito coletivo é muito importante. Em poucos dias, nós caímos em outro mundo. Temos de mudar o nosso software. O que valorizamos ontem, a nossa atividade diária, os nossos passatempos e o nosso trabalho, deve ser ponderado em função da gravidade da situação. A escolha certa, infelizmente, no futuro imediato, é reduzir as atividades e isolar as pessoas tanto quanto possível. Quanto mais a epidemia progredir, mais difícil, se não impossível, será o controle, e mais próximos estaremos de ser forçados a simplesmente deixar os fatos se desenrolarem. A hora de agir é agora. Ainda vemos, nestes dias, atitudes excessivamente inapropriadas e inconscientes da população. A mensagem ainda não foi passada.
As nossas autoridades de saúde estão confrontadas com três opções principais:
1) A primeira – que pode parecer cínica – seria considerar que quanto mais pessoas forem infectadas, mais isso permitirá imunizar a população, e a epidemia chegará a um fim natural, sem indivíduos imunologicamente não afetados. Esse é o princípio da imunidade de grupo. Pode-se calcular que, se 60% da população fosse infectada, a epidemia pararia, por impossibilidade de o vírus circular na coletividade. Mas essa opção teria o preço de uma epidemia muito brutal, de duração relativamente limitada, mas com um custo assombroso de manifestações graves. Vimos isso durante a epidemia da gripe asiática no Reino Unido, em 1957. Durante uma semana ou dez dias o sistema de saúde implodiu, porque os profissionais de saúde estavam doentes, o equipamento era inadequado e o número de pacientes graves era enorme.
2) A “abordagem chinesa”, totalmente oposta: o isolamento maciço de cidades e indivíduos parece eficaz com um controle indiscutível da epidemia. O risco é que tendo sido poucos indivíduos infectados (taxa de ataque reduzida devido ao confinamento); e tendo permanecido não afetados pelo vírus, eles são propensos a um retorno do vírus e correm o risco de um ressurgimento da epidemia, o que justifica o seu receio de um retorno da doença em áreas atualmente infectadas, como a Europa. Daí a necessidade absoluta de uma vacina para evitar esses possíveis ressurgimentos de surtos.
3) A posição intermediária, que é a nossa, é atrasar o pico de epidemia para espalhá-la no tempo, esperando que um pouco menos de 60% da população seja finalmente infectada e, sobretudo, que todo o sistema de saúde seja preservado. A isso se juntaria, espera-se, o gênio evolutivo das doenças infecciosas de que Charles Nicolle falou, para nos permitir sair da epidemia, mas ainda é muito difícil fazer prognósticos sobre a duração do episódio. A epidemia está, em primeiro lugar e acima de tudo, nas nossas mãos.
Tratamentos
Além da prevenção, é essencial encontrar tratamentos antivirais para reduzir a o grau de gravidade de algumas formas da doença e bloquear a transmissibilidade de pessoa para pessoa, se um uso generalizado disso for possível. Trata-se, antes de tudo, do “reposicionamento” de certos medicamentos já foram testados para outros vírus (como o HIV), e outros que são mais específicos para este vírus… e aqueles que provavelmente virão em seguida.
É igualmente urgente compreender melhor a fisiopatologia da SDRA para desenvolver uma farmacologia dedicada usando moléculas reposicionadas e, em seguida, moléculas verdadeiramente novas.
Essas doenças, como a Covid-19, estão entre as doenças emergentes de amanhã. É imperativo encontrar uma vacina eficaz. A concepção, a identificação, a investigação e o desenvolvimento, a validação, os estudos clínicos, o registro junto às agências reguladoras, tudo isto leva entre 8 a 12 anos para uma vacina padrão. É incompatível com a urgência de uma emergência. A capacidade de identificar novos alvos de vacinas melhorou consideravelmente nos últimos anos. Já dispomos de vacinas candidatas que vão começar a entrar em ensaios clínicos, geridas de forma a que se avance o mais rapidamente possível. Mas sabemos que tudo isso levará pelo menos um ano e só nos permitirá gerir os ressaltos, as etapas finais, e até prevenir a doença noutros continentes, como na África, onde as medidas de isolamento serão difíceis. A vacina é essencial, todos estão preocupados: o Instituto Pasteur, o Inserm etc. Mas há um tempo científico de desenvolvimento, e nesta fase de vazio, somos nós, a forma como entendemos essa doença e a necessidade dessas medidas de isolamento e higiene individual, que temos o nosso destino nas mãos. Não é todos os dias que o nosso destino é tão marcado por um evento. As guerras modernas são as doenças infecciosas. Nossa vida vai mudar.
Notas:
* Texto original presente no seguinte endereço eletrônico: https://laviedesidees.fr/Les-visages-de-la-pandemie.html
[1] N. do T.: Viremia é a presença de vírus no sangue circulante em um ser vivo.
[2] N da R.: pelo critério de notificação adotado pelo Ministério da Saúde brasileiro em acordo com a recomendação da OMS, também não é possível saber ao certo quantas pessoas são portadoras do vírus no país. Para informações sobre o critério de notificação consultar:
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