Por Nils Bubandt e Rane Willerslev
Tradução: Lucas Faial Soneghet
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Empatia e diferença cultural
Nossos casos etnográficos nos alertam sobre os filtros e modos de desligamento de empatia que, através da cultura, permitem a construção de vários tipos diferentes de alteridade e comunidade. Nesse sentido, eles nos empurram em direção a uma investigação mais ampla, não normativa sobre os usos e abusos da faculdade empática. Antropólogos recentemente começaram o trabalho de desmontar a pressuposição acadêmica e ocidental de que a empatia está necessariamente ligada a virtude e a boa vontade moral, mostrando como o termo “empatia” circula mal em contextos diferentes. Joel Robbins e Alan Rumsey demonstram que em muitas sociedades do Pacífico, as pessoas presumem ser difícil, senão impossível, saber o que está nos corações e mentes dos outros. Essa “doutrina da opacidade das outras mentes” (2008: 408) fornece para essas sociedades condições culturais muito diferentes daquelas existentes nos escritórios terapêuticos do Norte Global, em se tratando de “tomada de perspectiva” e socialidade como um todo. A etnografia, então, joga luz, primeiramente, em como a empatia tem vários filtros culturais que determinam que tipo de relações “empáticas” com outros pensa-se ser possível estabelecer. Em segundo lugar, a pesquisa etnográfica demonstrou que o que é chamado de “empatia” no Atlântico Norte está, em algumas partes do mundo, associado mais com o perigo do que com o entendimento benigno e mútuo. Como notam Hollan e Throop em seu panorama introdutório a série de estudos etnográficos da emparia no Pacífico, Indonésia, América do Sul e Ártico, “muitas pessoas temem como outros usarão conhecimento íntimo sobre eles e se esforçam bastante, conscientemente e menos que conscientemente, para impedir que outros acessem esse conhecimento. No extremo, eles podem temer que outros usarão conhecimento de tipo empático para ferir fisicamente ou matar…” (2008: 392).
Nossa preocupação aqui não é fornecer mais duas descrições de formas culturalmente específicas de perceber ou entender empatia. De fato, nem os Yukaghir nem as pessoas do Maluku do Norte tem, até onde sabemos, um termo específico para “empatia” em seus idiomas. Em vez disso, focamos nas formas deliberadamente enganadoras de mímica – pákostit (“fazer truques sujos”) em Yukaghit, e tiru (“fingir, copiar ou imitar”) em indonésio – para analisar como o engano envolve formas de imaginações empáticas e mímica que parecem funcionar similarmente através de vários cenários culturais porque, argumentamos, elas são fundamentais para o trabalho de construir alteridade. Logo, propomos ver o lado sombrio da empatia – a projeção emocional e cognitiva de si mesmo na perspectiva ou situação de outro para propósitos de enganação – não como uma exceção a socialidade, mas como uma maneira de reengajar analiticamente a qualidade mágica da alteridade que está na base da própria socialidade. Apesar de suas divergências, argumentamos que esses exemplos etnográficos de “empatia tática” nos dizem algo vital e socialmente universal sobre o entrelaçamento da alteridade com a imaginação empática.
Sibéria: quando simpatia com a presa animal é ruim
No grande catálogo dos mitos siberianos Yukaghir, um se destaca. Ele foi registrado primeiro por Waldemar Jochelson (1926: 147) em seu estudo clássico dos Yukaghirs, mas continua conhecido. O mito conta de uma menina que foi chamada, de acordo com a tradição, a cortar a carcaça de um alce morto por seu irmão. Quando a menina chegou no animal porto, descobriu sua cabeça, que o caçador havia isolado com neve. A menina olhou nos olhos do alce e, vendo sua escuridão profunda, pensou consigo mesma, “quando meu irmão começou a te dominar, você deve ter se sentido tão infeliz, tanto que começou a chorar” (ibid.). Dali em diante, o mito reconta, que os caçadores na comunidade foram incapazes de achar qualquer alce e o grupo começou a sofrer fome. O povo foi até o xamã para pedir conselho. O xamã se comunicou com os espíritos e explicou que quando a menina descobriu a face do alce e olhou para ela, ela presumiu que o animal havia sofrido com a arma de seu irmão. Por isso que os animais não se apresentavam mais. O povo perguntou, “o que fazer agora”? O xamã respondeu: “Vocês precisam enforcar a menina. Então, talvez, as coisas melhorem.” O povo enforcou a menina e dois cachorros a seu lado. Como Jochelson explica, “é melhor que uma menina morra do que todo o clã.” No dia seguinte, o irmão saiu para caçar e matou um alce. “Daquele tempo em diante, o sucesso acompanhou a caçada novamente” (ibid.).
A história é extraordinária por várias razões. Primeiro, os Yukaghirs, diferente de alguns de seus vizinhos, como o povo Chukchi por exemplo (Willerslev, 2009), parecem nunca ter praticado sacrifício humano e esse é o único mito em que eles matam um ser humano ritualmente, ainda por cima um de seu próprio clã. Para além disso, embora vários mitos Yukaghir recontem a transgressão de um tabu ou outro resultando em punição pelos espíritos, nenhum é tão extremo em suas consequências como essa história. Logo, a pergunta surge: Por que a pena da menina pelo animal provoca uma resposta tão brutal e sem precedentes? Podemos perguntar: A menina não está simplesmente descobrindo o óbvio, que um animal vai sofrer quando for caçado e atingido? Essas questões, como veremos, tocam no coração do assunto da empatia. Mas antes de chegarmos lá, é preciso dizer mais sobre o mundo da caçada Yukaghir.
Empatia mimética
Para os Yukaghirs, junto com muitos outros povos caçadores na Sibéria e nas Américas, todos os seres estão sujeitos ao mesmo princípio: eles são ao mesmo tempo predador e presa para outros seres (ver Goldman, 1975; Viveiros de Castro, 1992; Fausto, 2007; Brightman, 1993; Holbraad e Willerslev, 2007; Willerslev, 2001; Viveiros de Castro, 1998). As inúmeras histórias Yukaghir sobre o tão chamado “Povo Antigo Mítico”, uma tribo de canibais gigantes (que tem seus equivalentes através do Norte circumpolar) que anseiam despedaçar corpos humanos no frenesi de devora-los (ver Jochelson, 1926: 154; Spiridonov, 1996 [1930]), fornecem, de várias maneiras, o modelo ontológico no qual o cosmo em sua totalidade é concebido. Predação é a condição universal de vida, a base de toda interação entre espécies. Eduardo Viveiros de Castro tem chamado tal ontologia predatória de “perspectivismo” (1998). Perspectivismo implica que a subjetividade de humanos e não humanos é formalmente a mesma porque eles compartilham o mesmo tipo de almas e isso, por sua vez, dá a essas duas categorias um ponto de vista similar sobre o mundo. Não humanos – animais, espíritos, mesmo objetos inanimados – veem o mundo como humanos veem, vivendo em casas e em grupos de parentesco, considerando-se a si mesmos caçadores humanos, caçando sua presa animal. Entretanto, o que cada categoria vê como presa difere dependendo da fisicalidade do corpo. Seres humanos veem o alce como presa, porque todos os seres humanos compartilham um corpo similar. Os alces, por sua vez, veem a si mesmos como seres humanos, ao passo que veem caçadores humanos como canibais monstruosos. Semelhantemente, o Povo Antigo Mítico, com seus corpos gigantes, vê humanos como se fossem alces e são vistos por humanos como monstros terríveis cujas faces são grotescamente distorcidas por causa de seu desejo por carne humana (Jochelson, 1926: 154). Em outras palavras, são corpos que permitem um jeito particular de ver: quem você é quem você percebe como presa e predador depende do tipo de corpo que você tem (Pedersen e Willerslev, 2012; Willerslev, 2011: 513).
Nesse cosmo perspectivo, no qual todas as criaturas viventes veem a si mesmos como “humanos” e todas as outras são vistas ou como monstros ou alces, caçar se torna um exercício mimético no qual o caçador procura transformar seu próprio corpo em uma imagem da sua presa (Willerslev, 2007: 100-10; 2012: 104-12). Diz-se que os gigantes canibais, por exemplo, se transformam em jovens lindas e seduzem caçadores humanos (Willerslev, 2007: 93), enquanto o caçador humano, por sua vez, se transforma num alce atraente para seduzir outro. Esse processo de mudar de forma deve ser entendido literalmente. O caçador humano visitará a sauna na tarde antes de sair para a floresta, onde em vez de usar sabão, ele se esfrega com ramos de bétula (Willerslev, 2001). Os Yukaghir dizem que o alce reconhece o cheiro da bétula e o considera atraente. Assim, ele não foge, mas se aproxima do caçador. O cheiro essencialmente prepara uma relação sedutora entre caçador e presa (Willerslev, 2004: 642). É por isso que, pelo menos um dia antes de partir numa viagem de caça, o caçador se abstém de sexo totalmente. Não somente porque a atenção sexual do caçador deve estar direcionada ao espírito do animal, mas também porque a relação sexual deixa um odor humano inconfundível. Os caçadores dizem que somente aqueles que não tem cheiro de fluidos humanos atrairão presa (Willerslev, 2001).
Como muitos outros caçadores circumpolares, os Yukaghir conceitualizam a caçada como essencialmente não violente, envolvendo só meios positivos e não coercitivos de atração e sedução (ver Brightman, 1993; Kwon, 1997; Willerslev, 2012: 109). Essa visão também se reflete na retórica dos caçadores, que efetivamente deflete a realidade do ser um predador humano. O alce, por exemplo, é chamado de “o grande”, enquanto o urso é chamado de “o descalço”. Do mesmo modo, a arma é chamada de “pau” e a “faca” é chamada de “colher”. Similarmente, caçadores não dizem: “Vamos caçar alce”, mas usam frases codificadas como: “Vamos ver o grande”, ou “vou sair para uma caminhada”. Durante os sonhos noturnos do caçador, sua alma (ayibii, ou “sombra”) sai de seu corpo e vaga livremente. Os espíritos animais chamam a alma, convidando-a em sua casa da floresta para ter relações sexuais. Os sentimentos de luxúria e excitação sexual que a ayibii provoca nos espíritos animais são então estendidos para sua contraparte física, o alce, que, segundo se diz, corre em direção ao caçador na manhã seguinte com expectativa de experimentar um clímax sexual (Willerslev, 2004: 643). Por essa razão, a roupa de pele dos caçadores tem que ser bela e feita com cuidado com muitas decorações, faixas e miçangas. Caçadores dizem que o alce se sente tão atraído pelo que vê que “se entrega” (em russo: otdat’sya) para eles (Willerslev, 2007: 102).
Gunter Gebauer e Christoph Wulfhave notaram que a sedução “opera na imaginação do objeto da sedução… a arma do sedutor é uma imagem… Ela representa o objeto de desejo, mas não como é ou como se vê a si mesma. É uma imagem de fantasia… Assim que o objeto de sedução se fascina por essa… imagem, ela cai no poder do sedutor… Somente porque o objeto de sedução deseja a si mesmo que ele se deixa seduzir” (1995: 212-13). O mesmo pode ser dito sobre o caçador que seduz sua presa. Seu sucesso depende da produção de uma imagem de similaridade no alce, ou talvez em seu ser espiritual associado. Essa imagem, porém, não é uma cópia exata de como o espírito animal se vê. Em vez disso, é uma representação ideal, uma imagem fantasia do que o espírito quer se tornar, ou melhor ainda, daquilo com o que quer se tornar um. A imitação do alce que o caçador faz, então, faz mais do que simplesmente copiar as externalidades da natureza física do animal. Na verdade, o caçador busca embelezar e melhorar sua autoimagem. A sedução aqui não visa criar uma imagem precisa do outro, mas criar uma imagem que é ideal e narcisista. A sedução está enraizada na exaltação mimética da autoimagem do próprio espírito do animal (Willerslev, 2007: 101). O caçador consegue criar essa miragem ideal de semelhança ao expor sua alma, ayibii, que ele tem em comum com o alce. Como resultado, o que o animal vê no caçador não é um canibal monstruoso, mas sua própria autoimagem inflada, sua própria “humanidade” idealizada (ibid,: 190). Cativado por essa imagem fantasia, o alce não resite o caçador, que representa tudo menos o que é naturalmente; assim, se aproxima dele e eventualmente se joga nele.
Podemos dizer que o caçador, ao tomar a identidade de sua presa e criar uma imagem idealizada do seu ser, estabelece uma relação de “empatia mimética” com ela (ibid.: 104), algo que consideramos como uma forma particular de “empatia tática”. O termo “empatia mimética” ecoa o ditado dos Yukaghir: “o caçador só poderá matar o alce se o alce gostar do caçador” (Jochelson, 1926: 146). Entretanto, isso não deve ser confundido com uma relação de afeição mútua ou mesmo com amor, como se a presa se permitisse ser morta por causa de um carinho sentido profundamente pelo caçador. Descrições etnográficas de caça no Norte circumpolar geralmente carregam uma “semelhança muito forte com imagens da publicidade na indústria alimentícia ocidental, que representa animais ansiosos para se tornarem comida ou participando ativamente do processo de cozimento” (Brightman, 1993: 188-89). Nada poderia estar mais longe da verdade. Os Yukaghirs estão bem conscientes de que os interesses da presa não só diferem, mas estão de fato em conflito com os seus. Isso é expresso claramente quando pessoas dizem que do ponto de vista do alce, eles que são humanos, enquanto veem caçadores humanos como monstruosos comedores de homens. Em outras palavras, animais não se dão de boa vontade como comida para humanos. Para que façam tal coisa, eles devem ser seduzidos por atos de empatia mimética através dos quais o caçador transforma a percepção da realidade do animal numa ficção manipulada de desejo sexual ilimitado. O que os Yukaghirs têm em mente quando dizem que um caçador poderá matar um alce se o alce gostar dele não é o caçador enquanto predador humano, mas o caçador em seu disfarce animal, representando seu papel enganador de amante provocante.
Magia simpática
Dentro da antropologia, a imitação de outros humanos e não humanos costumeiramente foi discutida sob a rubrica da “magia simpática”, um termo notoriamente introduzido por James Frazer (1959 [1911]: 52). A magia simpática é baseada no princípio que “tipo produz tipo, ou que um efeito parece sua causa. [Então] o mágico infere que ele pode produzir qualquer efeito que desejar imitando-o.” (ibid.). Encontramos evidência do uso desse tipo de magia imitativa até no período pré-histórico. Nas famosas cavernas paleolíticas do sul da França e do norte da Espanha, das quais a mais antiga data mais ou menos de trinta mil anos atrás, as várias representações de mamíferos da Era de Gelo exibem marcas de flechas e lanças, revelando que caçadores atiraram nessas imagens (Willerslev, 2011: 520). Pensava-se que o que o caçador faz com a imagem do animal vai, cedo ou tarde, acontecer também com o animal físico real. Semelhantemente, muitos povos siberianos esculpem figuras de presa “no princípio que se a alma pictórica está de posse do caçador, o animal mesmo logo estará” (Lissner, 1961: 245).
O que há na semelhança da imagem e do animal representado que deveria conferir ao caçador poderes sobre o segundo? Frazer não conseguiu explicar essa conexão, então ele simplesmente atribuiu magia simpática a uma forma errônea de pensamento causal. Entretanto, em seu livro sobre a “faculdade mimética”, Michael Taussig (1993) avança uma interpretação diferente: a base da magia simpática não é uma má compreensão trágica das leis de causalidade, mas uma maneira particular de perceber coisas, animais e pessoas. Imitar alguém ou alguma coisa é estar sensualmente preenchido por aquilo que é imitado, render-se a ele, espelhando-o corporalmente. Segundo Taussig, é um jeito poderoso de compreender, representar e, acima de tudo, controlar o mundo ao redor. O que é valioso na articulação de Taussig entre magia simpática e mimese é que ela mostra como o poder mágico da mímica reside em sua capacidade de incorporar alteridade e ao mesmo tempo, num sentido profundo, permanecer o mesmo.
Frazer estava, portanto, errado quando afirmou que para a magia simpática funcionar, deve parecer o máximo possível com o original. Do contrário, há boas razões para que objetos mágicos ao redor do mundo sejam marcados geralmente por uma falta de realismo, sendo ou versões abstratas ou distorcidas de coisas reais (Pedersen e Willerslev, 2012: 475). Vemos esse traço distorcido na imitação que o caçador faz do alce: o que o animal reconhece no caçador, e o que o faz “se entregar” para ele, não é que ele espelhe seu ser físico na forma de uma réplica exata, mas antes a criação de uma imagem fantasia pelo caçador, expondo o que é na realidade “interior” ou invisível como algo “exterior” ou visível: a própria perspectiva infra-humana do animal. Então o poder mágico do caçador sobre o alce reside nele ser ao mesmo tempo o mesmo e outro, similar e, porém, diferente do alce. Sem esse elemento crucial de diferença, o caçador colapsaria no animal, se tornaria um com ele, tornando impossível qualquer exercício de poder.
Magia empática
Com essas observações em mente, voltemos ao problema central que nos interessa aqui: a natureza da empatia. Há muito tempo atrás, Theodor Lipps (1903), preocupado com as concepções de arte e de estética, introduziu a noção de Einfühlung, um termo que Edward Titchener (1909) traduziu como “empathy” para a língua inglesa. Einfühlung era para Lipps a tendência, vinda de quem percebe algo, de projetar a si mesmos nos objetos da percepção, e de imitar em suas mentes e com seus corpos a imagem que estava sendo retratada. Esse desejo estético era, para Lipps, um desejo do self por si mesmo, uma disposição para ser si mesmo, mas paradoxalmente, esse mesmo self arriscava desaparecer ou “cair na coisa” (ibid.) – uma interpretação que fez com que os críticos de Lipps o acusassem de “animismo selvagem” (Wispé, 1986: 19). O animismo (selvagem) na teoria da empatia de Lipps ressoa de maneiras importantes com a noção de magia simpática em Frazer. Porém, diferente de Frazer, que pensou erroneamente que o mágico era incapaz de diferenciar eu de outro e realidade de imaginação, Lipps estava consciente de que o imitador empático da arte se move entre identidades.
Como vimos, isso é verdadeiro se considerarmos o caçador Yukaghir, que é ele mesmo e o alce que imita, e que é forçado a navegar um curso complicado entre a habilidade de transcender diferença e a necessidade de manter identidade. No contexto da caçada Yukaghir, esse jogo sedutor de empatia mimética é via de mão dupla, visto que caçar não é somente a predação de animais por humanos; o animal e seu ser espiritual associado também estão engajados em atos predatórios contra o caçador humano. O espírito animal, dizem os Yukaghirs, buscarão matar o caçador humano por causa do desejo sexual que sentem por ele, pois assim poderão arrastar seu ayibii para seu lar como seu “cônjuge” (Willerslev, 2007: 46; Willerslev, 2012: 109). O espírito do alce tenta fazer isso enganando o caçador para que ele acredite que o que está vendo não é um alce, mas uma mulher humana jovem e linda. Quando essa tentativa é bem-sucedida, o caçador fica tão absorvido no alce que se esquece de mata-lo. Um fracasso desse tipo é explicado como se o caçador tivesse “se apaixonado” pela sua presa. Consumido por esse amor, ele não consegue pensar em mais nada, para de comer e logo morre. Seu ayibii, dizem os caçadores, vai viver com a presa animal. Para o caçador, então, matar uma presa não é só uma questão de conseguir carne, mas também é uma luta perigosa para assegurar fronteiras e preservar sua identidade como caçador humana (Willerslev, 2006). A teoria de Einfühlung de Lipps envolve a mesma consciência aguda do jogo entre identidade e alteridade: de segurar e ao mesmo tempo abandonar o senso de si mesmo na empatia. Einfühlung, afirmou Lipps, é muito diferente de Mitfühlung, ou simpatia. Empatia é um “sentimento em” uma projeção imaginada e emocional do próprio sei mesmo, algo que, como Titchener mais tarde enfatizou, tem uma fundação completamente cinestésica ou incorporada (1909). A empatia tem tanto uma variação cognitiva quanto emocional, e ambas são claramente formas incorporadas de saber.[1] Porém, a natureza emocional da empatia – e isso é crucial – não é sentimental, como é o caso da simpatia. Wispé faz esse argumento enfatizando que “na empatia o self é veículo do entendimento, e nunca perde sua identidade. Simpatia, por outro lado, diz respeito a comunhão em vez de precisão, e a consciência de si é reduzida em vez de intensificada” (1991: 79, ênfase dos autores).
Os Yukaghirs, é claro, não empregam os termos “empatia” e “simpatia”, e, portanto, não colocam relações humano-animal em termos dessa distinção particularmente ocidental. Em vez disso, eles usam a contradistinção entre “usar truques sujos” (o que é chamado de pákostit entre os Yukaghir) e “amor” (que é chamado anurE). Há uma correspondência clara entre os efeitos letais da feitiçaria em vítimas humanas e o uso de magia imitativa de caça para matar animais, visto que ambas são baseadas na criação de “imagens falsas” de outros através da vicariedade. Ambos também são chamados de atos de pákostit.
À primeira vista isso pode parecer bem diferente da nossa noção ocidental de empatia. E mesmo assim o significado chave dos contrários Yukaghir, “usar truques sujos” e “amor”, significam de maneira importante nossa distinção entre empatia e simpatia: “empatia” e pákostit envolvem não somente similaridade, mas, importantemente, também diferença. Os sentimentos de empatia do caçador surgem na imitação do alce precisamente porque suas experiências não são realmente aquelas do animal, porque os dois são seres diferentes afinal de contas, que, diante de sua dissimilaridade, vêm a possuir acesso a experiências corporais e sensoriais compartilhadas. Esse reconhecimento da diferença como algo que é indispensável e deliberadamente mantido, em vez de algo completamente dissolvido é, como vimos, o que permite que o caçador mate sua presa, mas também é, como Lipps apontou, o que distingue empatia de simpatia, e até mesmo de sentimentos de amor. Há um sentido importante no qual os atos de imitação reforçam essa delineação crucial necessária: pela sua própria natureza a mimese sempre implica em um elemento de “copiação” ou de correspondência incompleta com o original (Taussig, 1993: 51). O efeito disso é forçar constantemente o imitador a “retornar” a si mesmo, prevenindo-o assim de alcançar unidade com o objeto imitado (Willerslev, 2006). A empatia mimética está, então, situada na e definida pela diferença tanto quanto pela similaridade, e é essa diferença necessária que a distingue de outras formas relacionadas: simpatia, amor ou metamorfose. O que Frazer chama de “magia simpática” deveria então ser renomeado “magia empática”, posto que é a condição da empatia de ser tanto “dentro” quanto “fora” – parte e também desligado do objeto imitado – que torna esse tipo de magia efetiva no controle do mundo ao redor.
Expondo a verdade da caça
Estamos agora numa posição de explicar o sentido da história Yukaghit sobre a menina que foi executada pelo seu próprio clã porque expressou pena pelo alce morto. Claramente, a menina estabelece uma relação de simpatia com o animal. Simpatia vem da palavra grega sympatheia, significando literalmente “com” (syn) “sofrimento” (pathos), o que implica que o simpatizante substitui o sofrimento dele pelo de outro (Wispé, 1986: 318). Mas por que esse sentimento de simpatia pelo alce é tão intolerável a ponto de a menina ter que pagar com sua vida? Todo caçador sabe, no fim das contas, que animais sofrem quando são perseguidos, atingidos e mortos.
Quando o caçador se relaciona com o alce através de empatia mimética, ele é, como vimos, um fingidor hiper-reflexivo, que ao guardar pra si sua identidade como predador, maximiza a força sedutora de sua atuação enganadora do animal e do ser espiritual associado a ele. Passo a passo ele captura a imaginação do espírito do animal, fazendo-o desejar sua própria autoimagem ilusória. Desde a limpeza do seu corpo na sauna, passando pela sua imitação dos movimentos do animal, até os últimos segundos antes de mata-lo, o espírito do animal está envolvido cada vez mais profundamente na imagem fantasia produzida pelo caçador. No fim, o espírito fica tão excitado, cego por desejo sem sentido, que corre em direção a ele para que ele possa o matar.
Quando a menina na história começa a simpatizar com alce morto, ela traz para a consciência uma versão totalmente diferente de caçada. Todo o complexo de faz-de-conta é exposto, desmascarando a verdade de que, embora o amor entre humanos e presa seja habilmente atuado pelos caçadores, nunca é permitido que ele se desdobre. A verdade reprimida das relações caçador-presa é que elas são baseadas não em amor, mas em predação: todos os seres estão sujeitos a mesma regra cósmica, de ser tanto quem come quanto quem é comido por outros seres. Todos precisam matar para viver e isso é feito através de mudança de forma, mimese e truques. Caçar é a antítese do amor. Para que a mimese empática seja eficaz na caça, é crucial que seus mecanismos de faz-de-conta não sejam expostos. Não porque as partes envolvidas não sabem a verdade. Tanto caçadores quanto espíritos são astutos demais para acreditar em sua própria retórica sedutora de amor e não violência (Willerslev, 2013: 52). Eles não são vítimas desavisadas de algum tipo de falsa consciência. Na verdade, caçadores jogam o jogo de fazer amor e se comportam como se não soubessem que estavam seguindo uma ilusão simplesmente porque funciona e porque assim trazem para suas mesas a carne que dá vida (Willerslev, 2013: 54). Os animais e seus espíritos, por sua vez, continuam a se deixar serem seduzidos por caçadores por causa do prazer que sentem com isso. Assim, a verdade exposta pela menina não é chocante porque revela uma ignorância daquilo que está realmente acontecendo, mas sim porque expõe o cinismo da sedução dos caçadores e o prazer narcisista dos animais em serem seduzidos. Quando a verdade da caça é exposta dessa forma, a magia da sedução se perde. Caçadores e presas, agora não mais amantes em potencial, tornam-se antagonistas. A menina deve então morrer, e com ela morre a verdade óbvia e ainda assim insuportável sobre o “lado sombrio” da empatia mimética, que pode mais uma vez ser escondida.
Notas:
[1] Dentro do estudo psicológico e filosófico sobre empatia, há um grande debate em torno da definição de empatia como primariamente cognitiva, emocional ou visceral (Preston e de Waal, 2002; Stueber, 2006; Wispé, 1986). Nossa reação antropológica automática é apostar em todos os cavalos e sugerir que a empatia precisa ser entendida como simultaneamente cognitiva, emocional e corpórea. A tentativa de delimitar a causa última da empatia pode ser filosoficamente agradável, mas possivelmente prejudica o esforço de entende-la etnograficamente. Ver também Hollan e Throop, 2011: 18.
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