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NOTAS SOBRE A PANDEMIA: Como conduzir uma etnografia durante o isolamento social, por Daniel Miller

Daniel Miller propõe perspectivas para a realização do trabalho de campo no ambiente virtual por conta do novo coronavírus. Para o autor, o método online, tal como o presencial, é construído a medida que a pesquisa avança. Além disso, a intesificação desses interações permite com que se observe coisas que não serão possíveis em outros espaços.

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Por Daniel Miller
Tradução e Apresentação: Camila Balsa e Juliane Bazzo

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Apresentação

O antropólogo Daniel Miller é professor no Departamento de Antropologia da University College London. Possui uma extensa trajetória de pesquisa em cultura material e consumo, sendo atualmente uma referência no campo da antropologia digital. Em 03 de maio de 2020, Miller publicou um vídeo em seu canal Youtube, em que oferta perspectivas para encarar o trabalho de campo no universo virtual, num momento em que muitos antropólogos se veem sem outra opção para prosseguir com seus estudos, em razão da pandemia do novo coronavírus. Seus vinte agradáveis e sábios minutos de fala — uma verdadeira aula compacta, que inclui fragmentos de experiências etnográficas on-line e off-line — foram traduzidos ao português e adaptados para a forma escrita a seguir.

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Esta é realmente uma época típica do ano. A temporada em que, pelo menos no Reino Unido, doutorandos em Antropologia imaginam que vão a campo, para começar seu trabalho etnográfico. Agora, a pandemia e o bloqueio são trágicos de várias maneiras, mas para sermos específicos, há a situação daquele estudante de doutorado em Antropologia. Ele formulou seus planos, seus métodos, estava prestes a ir ao seu local de pesquisa e agora ele não pode mais. E ele encara o prognóstico de não saber quanto tempo essa situação vai durar.  Não tenho varinha ou conhecimento mágico e é possível que essa situação seja tão problemática, a ponto de você realmente não poder visitar seu local de campo e continuar invisível durante toda a sua etnografia. Posso imaginar quão trágico isso soa, melhor dizendo, parece debilitante. Então, quero gastar 15 minutos tentando convencê-lo de que, mesmo sob essas restrições, é realmente possível que você possa conduzir uma etnografia tão original, significativa e perspicaz quanto qualquer outra que tenha conhecido.

Deixe-me começar com uma pequena história. Alguns anos atrás, eu orientei uma estudante italiana, que realizava sua etnografia na Itália e que, no meio do caminho, por vários motivos familiares, precisou voltar para Londres. Então, continuou a interagir com seus informantes on-line e, depois de um tempo assim, veio me encontrar. Ela me disse: “É realmente bem interessante o que descobri: aquelas pessoas que conheci quando estava em campo e com quem agora estou em contato na webcam parecem muito mais abertas. Elas estão me dizendo coisas – coisas particulares, coisas íntimas – que não estavam me dizendo antes”. Achei isso incrível. E começamos a especular sobre o porquê disso. Por exemplo, poderia ser – conjecturando – que italianos, como católicos e com uma relação confessional estabelecida por conta disso, estavam percebendo a webcam como oferecendo esse tipo de luz e se viam acostumados a se abrir nessa configuração particular.

Mas o ponto é que a discussão sobre o confessional constitui, em certo sentido, o que nos torna antropólogos. Porque qualquer um que lhe disser que simplesmente existe uma coisa chamada on-line e outra chamada off-line, generalizando como tudo funcionaria em uma e em outra situação, não está pensando de maneira amplamente clara. O ponto de partida é que um engajamento on-line será diferente para cada população com que você trabalhe e, é claro, em diferentes níveis (para abranger todos os indivíduos com quem você trabalhe). Você precisará de um entendimento disso ou de formas específicas de envolvimento, como você necessitaria em qualquer outro tipo de etnografia off-line. Portanto, assim como existem muitos contextos off-line com os quais você pode trabalhar, também quero afirmar que há diversificados contextos on-line e a experiência em cada um será verdadeiramente diferente.

Quando estou ensinando metodologia aos estudantes de doutorado, fico um pouco chocado em um determinado ponto, porque eles devem escrever uma descrição do que farão, para cumprir o que nós, no Reino Unido, chamamos de upgrade – é possível haver um sistema diferente onde você esteja. O fato é que eles precisam esquematizar a metodologia que pretendem usar. Mas eu os digo que realmente não espero que usem a metodologia que definiram. Acho que o ponto principal da Antropologia é que, diferentemente de outras disciplinas, não esperamos consistência na metodologia. A razão é que, para nós, o método também é algo que você aprende no curso da etnografia. Na verdade, tudo se baseia na sensibilidade, na compreensão de como uma população em particular funciona.

Dou um exemplo: alguns anos atrás, eu conduzia um trabalho de campo sobre compras em Londres e, depois de um certo tempo, percebi que não precisava tagarelar para ir até às pessoas em suas casas, mas sim estacionar meu carro na estrada a caminho e ligar para elas dez minutos antes de estar chegando. Descobri que isso importava, porque os ingleses, quando sabem que alguém irá entrar na casa deles, querem ajeitar o cabelo, abaixar o assento do vaso sanitário ou o que quer que seja. Ao fazerem isso, estão bem: alguém pode entrar. Atentar para isso fazia realmente diferença para a interação subsequente. Mas isso não era algo que eu colocaria na minha proposta de método, porque me dei conta enquanto a etnografia prosseguia.

Algo similar ocorreu quando eu estudava o consumo em Trinidad[1]. Encontrei uma população em que as pessoas confiavam em você e passavam a conhecê-lo porque você ia a casamentos e orações com elas e a comunidade próxima — porque você ia a festas com elas. Dessa maneira, você se adapta ao modo pelo qual uma população em particular cria condições para sua socialidade, no que diz respeito a fazer amigos e conquistar a confiança das pessoas.

Portanto, seu método é algo que você aprende, não algo que já começa com você. Argumento que exatamente o mesmo se aplica on-line. E essa é a mensagem mais importante que gostaria de transmitir aqui. Quando usamos a palavra ‘método’ em Antropologia, geralmente a descrevemos como observação participante e alguns podem compreendê-la como aquilo que fazemos quando estamos em campo. Então, diriam, ‘se você só pode fazer isso on-line agora, talvez precise apenas efetuar muitas entrevistas, em vez de participar’. Quero sugerir exatamente o oposto: exatamente porque você estará trabalhando principalmente on-line, é necessário se concentrar ainda mais na observação participante, em vez de coisas como entrevistas. Por quê? Porque, como você deve perceber, há muitas oportunidades para a observação que agora não serão possíveis. Diante disso, o que você precisa fazer nessa espécie de mudança para um novo regime é encontrar maneiras de compensar esse problema, ao prever um modo como fará seu trabalho de campo.

Então, como isso funciona? Quando estou fazendo um trabalho de campo e tentando alavancar minha observação participante, geralmente, eu e meus estudantes apenas tentamos ser, de fato, úteis. Podemos ofertar ajuda para construir barcos em uma vila tropical. Podemos nos oferecer para cuidar das crianças, para que alguém possa cozinhar. Num último trabalho desses, na Irlanda, iniciei como voluntário, num grupo de teatro local, para fazer o chá[2]. Assim, gradualmente, começa-se a conhecer pessoas e outras formas de participação se abrem. Acho que exatamente a mesma abordagem deve funcionar para uma etnografia on-line. Ou seja, você principia dizendo como pode ser útil. Trata-se de uma situação em que todo mundo está realmente ficando on-line em um nível sem precedentes e você está compartilhando desse problema. Então, compartilhe-o.

Talvez você tenha habilidades para desenvolver um site ou monitorar contribuições e organizá-las. Talvez você possa criar ou selecionar entretenimento para o filho de alguém, para que ele possa cozinhar enquanto esse conteúdo está on-line. E, ao participar gradualmente da comunidade com as famílias on-line, como seria o caso off-line, você conhecerá as pessoas e, em seguida, organicamente, elas começarão a se tornar amigáveis e confiantes. Você será convidado a interagir on-line ou nas mídias sociais, pelo Facebook, no WhatsApp e nas demais maneiras pelas quais agora elas mesmas estão interagindo. Assim, você estará participando do engajamento que elas têm com os outros, como com você. É dessa forma que a etnografia se desenvolve naturalmente e, mais uma vez, isso dependerá da população específica em que você está e do melhor jeito de integrar-se a ela, nesse período de convivência on-line pelos próximos 16 meses (ou seja lá o que for).

Contudo, penso que, quando as pessoas se envolvem dessa maneira, uma das coisas que realmente as preocupa reside nas questões relacionadas à ética. Quero ressaltar que, realmente, não acho que esses aspectos sejam particularmente diferentes entre situações on-line e off-line. Assim como off-line, você está desenvolvendo amizades, relacionamentos, tentando garantir que as pessoas entendam por que você está lá. Você deseja mostrar-se aberto sobre a natureza desse envolvimento. É certamente o mesmo tanto on-line, quanto off-line. Se você vai a um pub à noite, como faria se estivesse pesquisando na Irlanda, engajando-se em conversas com quem lá estivesse, não necessariamente precisaria de um formulário de consentimento de entrevista de repente, mas sim se colocaria a aprender com aquelas conversas. O mesmo vale on-line: há pessoas na tela com as quais você aprende. E não há nada de errado nisso, desde que se mantenha o anonimato delas e se tenha claro até que ponto você pode ir.

Sinto que realmente houve um declínio na sensibilidade ética nos últimos dez anos. A razão está no aumento do que podemos chamar de ética burocrática. Quando discutimos ética agora, sempre parece ser sobre formulários de consentimento, comitês de ética e observância de preceitos. O problema disso é que se corre o risco de se esquecer o que a ética realmente deveria ser, como nos outros exemplos que demonstrei, a saber: a própria sensibilidade do antropólogo à situação de pesquisa em que se encontra, para entender com qual população está trabalhando, para compreender o que essas pessoas entendem ser ruim. Porque, fundamentalmente, ética é não prejudicar as pessoas. O que elas entendem por privacidade, quais são suas preocupações, deve vir delas mesmas, mais que da burocracia. Se você realmente se preocupa com ética agora, então para mim – esse é esmagadoramente o caso – seu principal problema ético está na situação da pandemia. Há uma razão para você fazer sua investigação on-line: é justamente por causa dessa crise que estamos passando atualmente. Então, você pode esperar que haja ansiedade, depressão, talvez abuso, certamente claustrofobia. O ético é realmente buscar ter certeza de que você se porta de modo sensível a isso no seu envolvimento com as pessoas.

Nessas condições, muito provavelmente o autêntico tino, se você aprecia ser etnógrafo, se revelará bastante direto. É a perspicácia de que você está lá para ouvir e que as pessoas passam a perceber que você realmente se importa com o que elas estão dizendo. Essa, para mim, sempre foi a principal contribuição de um etnógrafo à população com a qual está. Porque as pessoas, em quase todas as circunstâncias, querem essa oportunidade de tentar, de certo modo, ouvir a si mesmas e entender a si mesmas; o que sentem a respeito de suas circunstâncias, por meio dessas conversas. E, contanto que haja confiança, de que você não utilizará essas informações para fins alheios, creio que esteja lidando com o que é ética efetivamente.

Você pode considerar que, até agora, realmente discuti tudo isso como continuidade, ou seja, como se o on-line fosse o mesmo que o off-line, porque acredito que, para a maior parte dos problemas com os quais você agora se depara, isso é grandemente verdade. Mas você também pode sentir que precisará admitir existirem coisas que serão perdidas, por não sermos capazes de estar off-line. Então é aí que terá algo a ganhar, porque haverá acesso a evidências que não estariam disponíveis em caso contrário. Logo, existe uma quantidade enorme de dados potencialmente acessíveis, de modo a compensar o que será perdido.

Muito do meu trabalho como antropólogo tem sido a análise de materiais on-line. Por exemplo, eu trabalhei com Jolynna em um livro sobre a visibilidade no Facebook e o que fizemos foi explorar o fato de que o visual se tornou parte da conversa cotidiana[3]. Um resultado disso é que há uma enorme quantidade de recursos visuais disponíveis on-line. Acho que, para esse livro em particular, reunimos pelo menos cinquenta mil imagens, porque estávamos tentando observar as diferenças entre como as pessoas de Trinidad exploravam o visual em oposição àquelas do Reino Unido; como isso se relacionava com questões de gênero, classe e construção de corpos, comparativamente. Você é capaz de fazer, num universo como esse, o que constitui a essência da etnografia off-line.

Ou seja, você procura ficar lá tempo suficiente para obter um senso de repetição, de tipicalidade e, acima de tudo, o que se chama de normatividade. O que as pessoas consideram apropriado ou inapropriado – é interessante notar – se revela com rapidez mesmo on-line e pode ser estudado. Não é nem necessário olhar para uma quantidade tão vasta de dados assim. Na semana passada, publiquei algo que foi baseado em apenas algumas horas de análise, em busca de significados no campo irlandês onde venho trabalhando, sobre como memes são usados ​​para responder ao Covid-19, explorando as relações entre texto, visual, humor, etc. nesse conteúdo[4]. Existem muitos outros antropólogos que trabalham com material digital e, se você ficar on-line, certamente encontrará muitos recursos úteis.

Não obstante, descrevi uma situação na qual uma população se encontra profundamente imersa on-line, em que esse tipo de etnografia é possível. Entretanto, haverá antropólogos que estão em outras condições, trabalhando com populações que podem não ter acesso à Internet ou que começaram a trabalhar com um grupo e agora tiveram que partir na metade do caminho da investigação. Não posso afirmar que iguais possibilidades necessariamente estarão abertas em todos os casos. Se você estiver trabalhando em algum lugar na Amazônia ou em outra área similar, isso pode não ser verdade. Então, o que há para ser feito? É preciso admitir que, provavelmente, você terá de mudar de direção e de foco. Se você não vai poder trabalhar com uma população diretamente, pode então buscar entender o impacto das ONGs, da economia ou do Estado sobre ela ou a maneira como as coisas aparecem na mídia. Existem muitas outras perspectivas que potencialmente se abrem, se você aceitar a compreensão do que não terá condições de fazer.

Eu já supervisionei uma vasta série de doutorandos em Antropologia. Por isso, posso dizer que, no final das contas, muitas vezes são as coisas que as pessoas nunca pretenderam fazer, esperavam fazer ou realmente tiveram que fazer por padrão que acabaram por figurar entre as descobertas mais interessantes de seus projetos. Compreendo que esse é um momento muito difícil, mas mesmo que você trabalhe sob as restrições com as quais se depara agora, é absolutamente possível que obtenha algo tão original, significativo e perspicaz como etnografia, como outros já conquistaram no passado. Eu realmente espero que seja esse o seu caso e que isso que eu problematizei aqui tenha sido útil.

Notas:

[1] Cf. MILLER, Daniel. Modernity – An Ethnographic Approach: Dualism and mass consumption in Trinidad. Berg: Oxford, 1994.

[2] Miller indica fazer referência ao trabalho de campo executado no âmbito do projeto de longa duração chamado The Anthropology of Smartphones and Smart Ageing, que ele vem encabeçando desde 2017. O objetivo dessa iniciativa é estudar o impacto dos telefones celulares inteligentes no cotidiano de vida da população de meia-idade, especialmente em questões de saúde e bem-estar. Para tanto, envolve uma equipe de pesquisadores, que estão a realizar dez etnografias simultâneas em diferentes países, dentre eles, a Irlanda e também o Brasil.  Cf. https://wwwdepts-live.ucl.ac.uk/anthropology/assa/.

[3] Cf. MILLER, Daniel; SINANAN, Jolynna. Visualising Facebook. London: UCL Press, 2017.

[4] Cf. MILLER, Daniel. Memes – the moral police of the internet in the time of Covid-19. April 24, 2020. Disponível em: <https://anthrocovid.com/2020/04/24/memes-the-moral-police-of-the-internet-in-the-time-of-covid-19/&gt;.

Para citar este post:

MILLER, Daniel. Como conduzir uma etnografia durante o isolamento social. Blog do Sociofilo, 2020. [publicado em 23 de maio de 2020]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2020/05/23/notas-sobre-a-pandemia-como-conduzir-uma-etnografia-durante-o-isolamento-social-por-daniel-miller

4 comentários em “NOTAS SOBRE A PANDEMIA: Como conduzir uma etnografia durante o isolamento social, por Daniel Miller

  1. Pingback: Como conduzir uma etnografia durante o isolamento social, por Daniel Miller – Ensaios sobre a escola e a realidade brasileira

  2. Lucrecia

    tem como re

  3. Roseli da Costa Oliveira

    Gostei muito das possibilidades que ele aponta para as metodologias de pesquisa em situação d pandemia. As possibilidades que podem se abrir no decorrer da pesquisa, bem como as descobertas inesperadas mesmo não sendo possível a observação participante.

  4. Pingback: Dois anos de Primavera nos dentes e uma pandemia no meio do caminho – Ensaios sobre a escola e a realidade brasileira

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