
Por Lucas Faial Soneghet
Introdução:
No poema dramático Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto narra a jornada de Severino, retirante nordestino que deixa o sertão e ruma para o litoral. O caminho é marcado por vidas tingidas de morte, seja pela fome, pela doença, pelo assassinato ou pelo suicídio, quando Severino contempla a possibilidade de se jogar no Rio Capibaribe para dar cabo de sua vida. Essas vidas também são tingidas de sonhos, amores, angústias e desejos, cuja renovação em tom esperançoso se dá no nascimento do filho do carpinteiro José, em alusão clara ao nascimento de Jesus na narrativa cristã. A palavra “severina” no título indica tanto o nome próprio evocativo do Nordeste brasileiro quanto o estatuto de severidade e dureza das vidas que Severino encontra na jornada. Dito isso, a escolha do título talvez seja mais intuitiva que propriamente resultado de consideração analítica detida. O que quero dizer é que há algo a ser dito sobre o caminho entre os nomes próprios e as condições de vida gerais, entre Severinas e suas vidas severinas. Algo que passa pelos corpos, pelos óbitos e pela constituição dos sujeitos. Sigamos adiante.
A doença e a morte se parecem. São dois processos biológicos que podem ocorrer a qualquer momento e cujos efeitos se propagam para vários domínios da vida, resistindo e provocando todo tipo de reflexão científica, filosófica, religiosa, entre outros. Nem toda morte resulta de doença e nem toda doença leva a morte, entretanto, as duas servem como lembrete da fragilidade corporal intrínseca a existência humana. Para além disso, poderíamos dizer que tal fragilidade funda a cultura – se Becker (1995) estava certo, todo universo simbólico construído pelos humanos nada mais é do que uma estratégia elaborada de negação da morte – e a sociedade – se, como argumentou Elias (1994), nosso estado corpóreo dependente e desejoso, expresso emblematicamente no corpo infantil, fundamenta as relações primárias e, por conseguinte, todas as relações sociais.
Lidar com corpos em sociedade implica controle, mas também cura, cuidado, violência, aniquilação, racialização, sexualização, separação, agregação, disciplina, educação e daí por diante. O manejo médico-científico dos corpos, por exemplo, é somente um dentre os vários arranjos sociais de manejo da vida e da morte. A polícia pode ser considerada outro desses arranjos, um vinculado simbolicamente a ordem e a manutenção de um tipo de propriedade. Nesses arranjos, acredito haverem pistas para compreender dilemas fundamentais da vida em sociedade, não somente pela sua presença ubíqua no tecido social – todos adoecemos, todos morremos – mas também pela sua impressionante capacidade de indicar aquilo que valorizamos. Em outras palavras, as formas pelas quais adoecemos e morremos indicam o que é realmente importante para nós (Kleinman, 2006).
Em tempos de COVID-19, algumas questões socio-biológicas ganham evidência, particularmente em torno do número de óbitos e das narrativas de morte. Nas próximas linhas, pretendo refletir sobre as vias que ligam os números e as narrativas, o público e o privado, a morte do si mesmo e a morte dos outros.
Entre corpos e sujeitos
Os existencialistas costumavam dizer que a morte de si mesmo é inacessível e incompreensível. Afinal de contas, se morrer é a cessação da consciência, como é possível experimentar a própria morte? Impossível. Todavia, encontramos a morte dos outros ao longo da vida, desde o mosquito que esmagamos na parede da cozinha até o atropelamento na rua da frente. Em tempos de pandemia, a dimensão anônima e pública da morte está em evidência no número de óbitos que sobe a cada dia. A estatística sobre a morte, a despeito ou por causa de sua objetividade, tem seus efeitos. Ela pode servir, para uns, como forma de justificar a necessidade de medidas políticas urgentes que visem assegurar a saúde e o bem-estar de todos, mitigando os efeitos de uma doença cujo fim não parece estar próximo. Para outros, pode servir como objeto a ser desmascarado, uma maquinação de um cabal conspiratório que deseja instrumentalizar o medo como forma de exercer autoritarismos desmedidos e ilegítimos. Ainda para outros, ela não passa de um número pequeno que nada significa, que soa até um pouco falso e que não deveria ser motivo para tanto alarde.
No debate sobre o que o número de óbitos pode e deve nos dizer, encontramos muitas narrativas sobre pessoas que morreram de COVID-19. Nessas narrativas, constam seus nomes, suas famílias, seus rostos e as circunstâncias nas quais encontraram seu fim. Contextualizar e identificar são formas de transformar o anonimato dos números – que tem sua própria potência ao expressar o escopo do problema – em identificação ou, em outras palavras, formas de dizer que um desses números poderia ser você. Dar nomes e rostos aos números de óbitos significa também os lembrar como acreditamos que devemos lembrar dos mortos. Sendo assim, temos de um lado o número de óbitos com seu valor impactante, mas seu teor qualitativo indiferenciado devido ao anonimato, e as narrativas de cada um, que por serem anedóticas e particulares, podem inspirar um senso de identificação imediato. A palavra importante aqui é “podem”, indicando potencial que pode ou não ser atualizado. Temos também, na onda de protestos que tomaram o mundo no último mês, a questão pulsante do racismo e da sujeição de corpos negros a regimes desiguais de vida e de possibilidade de morte. Os nomes e os rostos de George Floyd e João Pedro encarnam o número crescente de pessoas negras cujas vidas foram ceifadas pela violência policial. Entre números e narrativas, há um segundo nível de análise, por assim dizer: a distensão entre público e privado. Números de óbitos e estatísticas de violência policial tem teor abstrato, técnico e quantitativo, compondo técnicas de Estado e baseando medidas institucionais. Narrativas de morte tem caráter concreto, pessoalizado e qualitativo, compondo as histórias de pessoas de carne e osso. A divisão é claramente espúria se tomada de maneira simplista e final. Narrativas são feitas públicas e inspiram disputas de movimentos sociais, visando reformar ou abolir as instituições que produzem, em mais de um sentido, os números. Esses, por sua vez, incorporam as narrativas e entram nas casas, justificando estratégias de interação no dia a dia, como o distanciamento social e o isolamento. Por fim, um terceiro nível pode ser identificado na articulação entre o sujeito e o outro. Para os propósitos dessa reflexão, o que deve ser ressaltado é a dimensão intersubjetiva da constituição da subjetividade enquanto mediada pela morte. Então, trata-se de pensar a morte de si mesmo e a morte do outro como portas de entrada para esse processo social de constituição mútua da vida subjetiva. No meio disso tudo está o corpo.
Mead (1934) já dizia que compreendemos os outros como outros “eu” porque conseguimos, devido a nossa capacidade reflexiva, estimular em nós mesmos as reações potenciais desses outros. Se consigo estimular em mim a possível reação a um evento imaginado, como por exemplo a tristeza de perder um ente querido, posso compreender a reação do outro e então concebe-lo como um “eu”, assim como eu. A capacidade do corpo humano de ser estimulado por si mesmo e de compreender reflexivamente esse estímulo é fundamental para o desenvolvimento das competências sociais que nos acompanham pelo resto da vida. Sei que meu companheiro de interação vai entender o que vou dizer com palavras porque, ao pensar no que vou dizer, eu mesmo consigo entender. Do mesmo modo, sei que receber um murro é doloroso porque, em algum momento da vida, senti dor ao receber alguma bordoada. Não é preciso que as experiências sejam exatamente as mesmas, só que os circuitos cognitivos-corporais funcionem mais ou menos da mesma forma.
Merleau-Ponty, em sua fenomenologia da percepção, disse que encontramos os outros no mundo primeiramente como outros “eu”, não como objetos. Isso porque os outros, assim como o “eu”, tem corpo, esse corpo que é ao mesmo tempo fundamento e meio para a existência. O corpo deve ser entendido como um objeto sobre o qual o “eu” pensa, mas antes como um conjunto de significados vividos, um nexo de práticas corporificadas (Merleau-Ponty, 2005, p. 177). Destarte, o senso de estar-no-mundo enquanto um corpo vivo está desde o início marcado pela existência de outros corpos. Logo, o estar-no-mundo é mais um estamos-no-mundo do que um estou-no-mundo. Partindo do “problema do outro” como colocado por Husserl – o problema de como é possível para uma mente conhecer e sequer constatar a existência de outras mentes –, Merleau-Ponty propõe um deslocamento corporal para uma fenomenologia demasiado cognitiva.
Estamos em um mundo com outros corpos que podemos acessar pelos nossos sentidos, logo, nosso modo primário de acesso ao mundo e aos outros reside na mesma abertura primordial ao meio. O corpo sente e é sensível. Por isso, Merleau-Ponty fala de uma intercorporalidade (1968, 143), denotando que, por sermos primariamente corpos sensíveis e sencientes diante de outros corpos num mundo compartilhado, toda subjetividade é intersubjetiva. Isso não significa que não existam pensamentos privados, sentimentos escondidos, vidas internas secretas ou personalidades individuais. Porém, todos esses indícios da subjetividade só se atualizam, encontram sentido, legitimidade e eficácia no mundo intersubjetivo. Além disso, o fenomenólogo francês chega a afirmar que mesmo o “tecido” que compõe os pensamentos e sentimentos não é em última instância privado, pois é composto parcialmente por repertórios culturais, disposições corporais comuns e experiências compartilhadas (Crossley, 1995).
Bourdieu fundou sua teoria na noção de que os seres humanos carregam consigo um impulso pela “busca do reconhecimento” (2001, p. 201). A imagem da sociedade oferecida por Bourdieu é a de um conjunto de campos de posições estruturadas no qual os agentes sociais se encontram em disputa por recursos materiais e simbólicos escassos. Cada campo possui sua própria lógica de disputa, seu “jogo” específico. Para jogar o jogo, o indivíduo dispõe de um conjunto de “capitais”, recursos materiais e simbólicos cujo volume e distribuição demarca sua posição no campo. Falar de recursos materiais e simbólicos indica o traço distintivo da teoria bourdiesiana: as relações de força assimétricas objetivas no campo são homólogas às relações simbólicas que formam a visão dos atores sobre o campo. Isso porque as estruturas objetivas de distribuição desigual de recursos/poder/capital correspondem as estruturas cognitivas de distribuição de sentido. Os atores jogam o jogo dos campos sociais não somente porque buscam alguma recompensa material ou porque buscam superar seus adversários, mas porque o que está em jogo, talvez acima de tudo, é a possibilidade de sentido para a própria existência. A posição do indivíduo em sociedade não o dota somente de um estoque de recursos manipuláveis capazes de sustenta-los, mas também de um conjunto de expectativas acerca do que é ser uma pessoa digna. Vivemos em sociedade pois é nela que encontramos a possibilidade de sermos reconhecidos enquanto pessoas que tem algum valor. Esse valor, porém, está vinculado a posição do sujeito em um campo estruturado pela distribuição desigual de recursos simbólicos e materiais. Nem todos importam do mesmo jeito, mas todos desejam importar.[1]
Norbert Elias argumentou que, por virmos ao mundo como criaturas frágeis e dependentes, estamos desde o início fadados a buscar nos outros os complementos daquilo que não somos. A abertura do corpo humano ao mundo, dada pelos sentidos e pela sua suscetibilidade a estímulos externos, é o que define sua “natureza”:
Ao nascer, cada indivíduo pode ser muito diferente, conforme sua constituição natural. Mas é apenas na sociedade que a criança pequena, com suas funções mentais maleáveis e relativamente indiferenciadas, se transforma num ser mais complexo. Somente na relação com outros seres humanos é que a criatura impulsiva e desamparada que vem ao mundo se transforma na pessoa psicologicamente desenvolvida que tem o caráter de um indivíduo e merece o nome de ser humano adulto. (Elias, 1994, pg. 27)
A maleabilidade, fragilidade e o desamparo são os traços característicos da antropologia filosófica de Elias. Por estarmos abertos ao mundo e por nascermos “incompletos”, nos vemos enlaçados uns aos outros em relações de interdependência. Portanto, a constituição gradual e nunca completa de uma subjetividade está predicada nas relações com os outros em sociedade. Decorre disso que as transformações nessas amplas redes de interdependência funcional acarretam transformações nos corpos e em suas sensibilidades.
Em suma, existir em sociedade significa só se ver completo no encontro com o outro, de modo que a dependência e, posteriormente, a interdependência são traços fundamentais da vida humana. A pedra de toque da subjetividade, o senso mais íntimo de ser alguém, de ser si mesmo, está localizada nesse movimento perpétuo em direção ao outro. Porém, a mesma abertura que pode lançar o sujeito em direção a um encontro amoroso e positivo, no qual se vê reconhecido em sua plenitude existencial, também pode ser via para agressões, abusos e aniquilações. É nesse sentido que Judith Butler usa o termo vulnerabilidade para denotar a “parte da vida corpórea” que, embora comum, “se torna altamente exacerbada sob certas condições sociais e políticas.” (2006, p. 383). A tragédia da (inter)subjetividade é que sua fonte de realização plena também é sua fonte de ameaça constante.
Morte sua, morte minha, morte de quem
Voltemos então aos números e às narrativas. O que o uso (e o não uso) do número de óbitos nos diz? O impacto de um número crescente é para alguns evidência cabal da necessidade de medidas estatais coerentes, urgentes e eficazes fomentando a manutenção e a melhora do sistema de saúde público, o investimento na pesquisa científica e o reforço de medidas de isolamento e distanciamento social. Para outros, o número é uma cifra enganosa, que serve para corroborar um estado de coisas que faz mais mal do que bem. É preciso “apurar” os números corretamente e até lá é melhor não os divulgar, segundo o presidente Jair Bolsonaro. Junto a uma política de ignorância e desinformação que prefere oferecer uma opção de números possíveis para que cada um possa escolher aquele que melhor lhe convém, está uma tentativa de ocultar a morte do outro. Se é verdade que um número somente pode não ser capaz de inspirar a identificação com o sofrimento alheio, ele é capaz de, no mínimo, tornar concreta a ameaça existencial da possibilidade de morte. Ter essa ameaça em mente pode até ser um passo necessário para a autenticidade do ser como queria Heidegger, mas aqui o que importa é, urgentemente, enxergar no número a urgência de medidas coletivas que levem a sério o quanto estamos implicados mutuamente nas vidas e nas mortes uns dos outros. O que uma doença infectocontagiosa potencialmente fatal faz é exacerbar o senso de interdependência que, nos séculos XVII e XVIII, foi suficiente para impulsionar a formação de aparatos estatais que vieram a ser conhecidos posteriormente como os blocos básicos do Estado de bem-estar social (De Swaan, 1988). Negar a objetividade do número de óbitos é negar a necessidade de enxerga-los como um perigo concreto ao “Nós”. Não é somente o “eu” ou os “próximos”, ou mesmo os “grupos de risco” que pode ser lido nas estatísticas, mas esse senso difuso de que há algo composto pela soma de todas as partes que é maior do que a soma das partes. Evidentemente, tal interpretação é uma dentre várias. O número de óbitos é, além de uma peça técnica dotada de objetividade científica, um objeto de disputa política. Além disso, é um lembrete de que a morte dos outros nunca pode deixar de ser a morte de cada um. Porém, parar aí seria insuficiente.
Como bem nos lembra Foucault, Mbembe, Butler e os demais interessados em pensar a gestão política das vidas e das mortes, nem todo corpo é gerido de maneira igual. Por trás da generalidade dos números, está a desproporcionalidade dos efeitos da pandemia sobre os mais pobres[2], a população negra[3] [4] e as mulheres – nesse grupo em particular, as consequências podem ser indiretas como no caso da violência doméstica, ou direta pelo fato das profissões na saúde serem majoritariamente femininas.[5] [6] Entender que a morte dos outros nunca pode deixar de ser a morte de cada um não implica aplainar essas desigualdades, mas, do contrário, acusa-las. Isso porque os clamores pelo retorno à normalidade pelo bem da economia ignoram justamente a imagem dos ônibus lotados, das trabalhadoras domésticas, das profissionais de saúde, das favelas.
Nesse ponto, chegamos nas narrativas. Aqui, as faces, a pele, os nomes e as famílias encontram seu lugar. Recentemente, uma onda de protestos tomou o mundo após o assassinato de George Floyd, 45 anos, por agentes da polícia estadunidense no dia 25 de maio. Alguns dias antes, no dia 18 de maio, João Pedro Mattos Pinto, 14 anos, foi assassinado na casa de sua tia pela polícia militar no Rio de Janeiro. Os dois casos são emblemáticos da desigual valorização e vulnerabilização das vidas negras, unindo-se a uma longa série de mortes que compõe mais um número crescente. Porém, as vozes dos movimentos sociais os chamam pelo nome, trazem seus rostos, ecoam as palavras de suas famílias. O luto é também um processo político para aqueles cujos corpos são tidos como matáveis, seja pela negligência, pela violência ou pelo desamparo (Butler, 2003; Vianna, 2014). Lembrar e narrar os mortos é reconstituir neles uma subjetividade que não pode se apagar, senão apaga-se com ela todo um mundo constituído pelas suas relações sociais, suas idiossincrasias, rotinas, desejos, expectativas (Seale, 1998, p. 69; McNamara, 2001, p. 107-119; Lindemann, 2014, p. 197).
Temos então, duas frentes de um fenômeno político-existencial: o choque do número crescente de óbitos que por si só já inspira as mais variadas reações e o impacto das narrativas de alguns desses números. Enquanto o primeiro apela para a urgência de medidas estatais coerentes e eficazes na direção do isolamento social, da manutenção e melhora do sistema de saúde público, e do cumprimento das medidas necessárias para conter a propagação do vírus, o segundo apela para nosso senso mais íntimo de segurança existencial, pois ao ver os outros como outros “eu”, percebemos que o nosso “eu” e aqueles mais próximos dele não estão seguros. É claro, estas duas frentes não estão de modo algum desvinculadas. A vinculação entre o volume de óbitos e as narrativas particulares é análoga a vinculação entre público e privado e a vinculação entre morte dos outros e morte de si mesmo. Embora haja um pano de fundo incontornável que liga cada um desses polos, a passagem entre os dois e os caminhos dessa passagem não estão dados. É perfeitamente possível, como mostram alguns atores políticos no cenário brasileiro, duvidar dos números e inventar narrativas particulares que sirvam de contraponto. Os dois últimos ataques do presidente Jair Bolsonaro mostram justamente isso: tentar impedir a divulgação do número de óbitos com a justificativa que esse não é “preciso” e não está devidamente apurado, enquanto atiça seus seguidores a entrar em hospitais e filmar os leitos para desmentir a imagem mentirosa de moribundos lotando os CTIs dos nossos hospitais em decorrência da pandemia.
A articulação entre números e narrativas aponta para os processos de constituição de subjetividade e, junto a isso, das possibilidades de vida e morte. Se é verdade que a constituição e legitimação do sujeito em sociedade passa pela intersubjetividade e se é verdade que essa se expressa não somente por meio de interações sociais face a face, mas também por estruturas sociais – enquanto padrões de relações sociais – e instituições sociais – enquanto cristalizações de rotinas práticas coordenadas, as formas de lidar com números e narrativas podem nos dizer algo sobre as formas de constituir sujeitos, suas vidas e suas mortes.[7] Diante disso, enxergo quatro vias possíveis para a passagem entre números/narrativas, público/privado, morte deles/morte de si:
– A via da evitação, que pode ser ativa ou passiva. Quando ativa, se traduz na recusa reconhecer a gravidade do estado atual do mundo, expresso pela técnica estatística da contagem de óbitos, e na recusa das narrativas pontuais como meras anedotas distantes que só ocorrem com pessoas que são grupos de risco, logo, não inspiram medo ou simpatia. A evitação ativa é, noutras palavras, uma forma de negação. Porém, a evitação também pode ser passiva e nesse caso talvez seja melhor representada por uma atitude pessoal de coping, um modo prático de lidar com a significância de fenômenos coletivos públicos que se baseia no insulamento da esfera privada. Não pretendo insinuar que a negação é uma via inválida ou condenável, afinal, algum grau de negação ou ignorância pode ser parte operativa do funcionamento da vida subjetiva. É implausível que uma pessoa esteja atenta e seja igualmente afetada por todos os estímulos externos, especialmente em contextos de crise.
– A via do negacionismo está próxima da modalidade de evitação ativa por negação, mas se diferencia pois aposta em práticas deliberadas de duvidar e atacar o número de óbitos e as narrativas. O número de óbitos é acusado de ser uma representação total ou parcialmente falsa da realidade, enquanto as narrativas são deslegitimadas, seja pela desconsideração dos sujeitos nelas retratados – apontando o pertencimento a grupos de risco, duvidando da causa da morte, duvidando dos fatos relatados – ou pela criação de narrativas contrafactuais – o exemplo já clássico do primo do porteiro do prédio que recebeu atestado de óbito constando COVID-19, embora tenha morrido porque um pneu estourou em seu rosto. A via do negacionismo é uma forma política de constituição desigual da subjetividade que passa pelo apagamento ou pela negação a priori do estatuto de subjetividade para alguns corpos. Não se trata somente de conferir valores desiguais em uma mesma ordem de grandeza, mas de fundar o princípio valorativo que é ser sujeito na exclusão de alguns elementos potencialmente aniquiláveis. O “cidadão de bem” só é o que é porque se opõe aos bárbaros incivilizados. Estes não são “menos” cidadãos, mas são elementos incapazes de socialização a princípio.
Por outro lado, no caso específico das mortes por doença infectocontagiosa, a via do negacionismo opera pela negação da morte dos outros através da negação da objetividade da patologia viral. O efeito das narrativas de que o coronavírus é uma arma química chinesa ou só uma “gripezinha”, é a colocação das vidas mais vulneráveis aos efeitos da pandemia em um estado desamparo, pois não haveria motivo de levar o risco de morte a sério. Em termos da articulação público/privado, a lógica econômica-privada aparece como peça fundamental, na medida em que é mobilizada como justificativa seja para a inação dos aparatos públicos estatais, seja para a ação direcionada a garantir o funcionamento dos mecanismos do capital. Nesse sentido, duas lógicas do privado são opostas: as vidas privadas dos trabalhadores são desconsideradas em face do funcionamento da economia privada de mercado. No meio, está o funcionamento de um Estado neoliberal. Ao fim e ao cabo, a transformação dos arranjos coletivos de manejo dos corpos – fortalecimento do sistema público de saúde ou fim da polícia militar – é impensável nessa via, a não ser que seja na direção de reforçar políticas de morte.
Na via do negacionismo, a morte do outro é uma mentira, uma consequência de traços específicos do indivíduo (se for de um grupo de risco) ou um obstáculo a ser suportado para um bem maior (do capitalismo). Sendo assim, a morte de si não é posta em pauta e permanece tácita, assim como os processos desiguais de constituição de subjetividade. Ao negar a morte outro, não se nega a si mesmo, mas se nega o fundamento intersubjetivo do “eu”.
– A via da equalização, segundo a qual todos estão em risco igualmente, visto que o vírus ataca todos independente de gênero, classe e raça. Aqui, nem as narrativas nem os números são negados, porém a vinculação entre eles é tomada como uma questão sem qualquer teor político. As atitudes do governo não são lamentáveis por seu viés ideológico, mas pela sua ineficiência técnica. Tal atitude é pouco comum, porém guarda alguma simpatia com clamores do tipo “todas as vidas importam” e “patrão sofre também”. Aqui, o jogo público/privado toma feições mais coletivistas, embora tenha o potencial de descambar para a valorização da lógica privada econômica e a manutenção do status quo governamental. É uma via individualista liberal formalista por excelência, posto que parte do esvaziamento do teor político dos números e das narrativas através de uma equalização espúria. Embora pareça humanismo, o clamor de que “todas as vidas importam” acaba por desqualificar as reivindicações dos grupos cujas vidas são sistematicamente desvalorizadas. As mortes dos outros é, formalmente, colocada como semelhante a morte de si mesmo, porém, ocultam-se as condições de vida que concretamente tornam as mortes desiguais.
– A via do reconhecimento, segundo o qual os números e as narrativas são lamentáveis não somente pela pujança da morte enquanto fenômeno existencialmente ameaçador, mas também pela gestão política da situação. Aqui, o reconhecimento pode ou não se traduzir em uma postura crítica e ativa. De fato, acredito que há uma parcela enorme da população que se encaixe em uma variação não ativa do reconhecimento: a situação é ruim, a gestão política é insatisfatória, mas não há algo que eu possa fazer sobre isso. O reconhecimento não necessariamente gera resposta ou engajamento. Os indivíduos que transitam por essa via podem até ser a maioria e seu traço distintivo está justamente no consenso acerca da interpretação da situação, sem que resulte dele uma postura ativa crítica. Talvez a percepção da gravidade do real se traduza em radicalização política conservadora, talvez não. De todo modo, pessoas que reconhecem a situação, mas não a articulam em termos de uma crítica da gestão política atual ou de uma postura ativa de solidariedade não devem ser consideradas “passivas” ou “massa de manobra”. Assim como é para as condições de vida e morte, as condições de transformação da percepção de uma situação crítica em prática não estão igualmente distribuídas. Por outro lado, o contexto pode ser entendido como consequência lógica de uma plataforma autoritária fascista e de um sistema longamente estabelecido de gestão desigual das vidas, segundo a qual alguns são mais matáveis e suscetíveis a morte do que outros. As narrativas são a base para reconhecer o solo comum da intersubjetividade, no qual todos sofrem pela morte de cada um, enquanto servem para tingir o número de óbitos com um teor qualitativo distintivo, indicando os efeitos concretos por trás de mensurações abstratas. A gravidade da situação e a especificidade de seus efeitos são reconhecidos concomitantemente. Entretanto, as articulações entre público e privado são objeto de disputa dentre os que adotam a via do reconhecimento. O uso de narrativas de morte pode ser considerado problemático por individualizar questões estruturais, ao passo que os números sofrem do problema contrário, tornando abstrato o efeito real da morte na vida dos que ficam. Além disso, os caminhos de transformação dos arranjos coletivos públicos de manejo dos corpos não estão dados. Se reforma ou abolição, se ruptura ou continuidade, tudo está em jogo, embora não se questione a necessidade de soluções coletivas. A morte dos outros é vista, a despeito das possíveis soluções público/privadas, como parte fundamental da possibilidade da existência do si mesmo e do “nós”. Ela não afeta somente por aquilo que tem de semelhante, mas também por aquilo que tem de desigual. Assim, a morte dos outros torna-se princípio de solidariedade e ponto de articulação entre a vida privada e a vida pública. Isso porque a subjetividade vivente interrompida do outro, seja por negligência ou por violência, é o motor da reivindicação pela reconstrução da vida comum.
Nas duas frentes, nos números e nas narrativas, o que está em jogo é a capacidade de se sentir afetado e de se ver na morte do outro e, por conseguinte, a capacidade de ver o outro enquanto um “eu”, enquanto uma vida que importa. Por baixo de todas as reflexões apresentadas aqui, corre o rio do afeto. Afeto que não deve ser entendido somente como uma sensação corporal inconsciente, nem como um construto cultural, ou mesmo como uma dimensão intermediária entre um e outros. Se sentir afetado e afetar o outro é uma questão de prática e de significado (Wetherell, 2012). Afetos abrem disposições de agir, como ensinou Espinoza, mas também são os meios pelos quais o entorno age no sujeito. Por isso, o afeto é matéria política (Ahmed, 2004). Raiva, impotência, frustração, tristeza. Todos são estados corporais plenos de sentido que podem ou não ser articulados discursivamente. Quando narrados, os afetos ganham padrão em termos das relações sociais que preenchem e do percurso temporal que desenham. É assim que as narrativas podem inspirar a raiva justa dos movimentos negros ou o ódio destruidor de movimentos fascistas. Do outro lado, o número de óbitos do COVID-19 pode inspirar sensações de tristeza e frustração em profissionais de saúde e, ao mesmo tempo, o cinismo dos teóricos de conspiração. Logo, entre números e narrativas, entre público e privado, entre a morte do outro e a morte de si mesmo, estão os fios do afeto e as rotinas práticas que modelam nossas relações sociais e, por consequência, o processo social de constituição das subjetividades. Mas isso é assunto para outro ensaio.
Referências bibliográficas:
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Notas:
[1] Para uma leitura excelente e mais refinada da questão do reconhecimento na antropologia filosófica de Pierre Bourdieu, ver Gabriel Peters (2012).
[2] PIRES, Luiza Nassif; CARVALHO, Laura; XAVIER, Laura de Lima. “COVID-19 e Desigualdade no Brasil”. Disponível em: http://cebes.org.br/2020/04/covid-19-e-desigualdade-no-brasil/
[3] CORREA, Alessandra. BBC Brasil. “Por que a população negra é afetada desproporcionalmente pelo COVID-19 nos EUA?” Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52267566.
[4] Nações Unidas Brasil. “ONU alerta para impacto desproporcional da COVID-19 sobre minorias raciais e étnicas.” Disponível em: https://nacoesunidas.org/onu-alerta-para-impacto-desproporcional-da-covid-19-sobre-minorias-raciais-e-etnicas/
[5] United Nations. “COVID-19 pandemic exposes global ‘frailties and inequalities’: UN deputy chief.” Disponível em: https://news.un.org/en/story/2020/05/1063022
[6] PARREIRAS, Mateus. “Coronavírus: isolamento social amplia violência doméstica.” Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/05/11/interna_gerais,1146100/coronavirus-isolamento-social-amplia-violencia-domestica.shtml
[7] Para uma teoria da subjetividade precarizada e criativa, recomendo a tese de doutorado da querida Ábia Marpin, intitulada “Repertórios de negritude: racismo, música e teoria racial” (2020).
Para citar este post:
SONEGHET, Lucas Faial. Mortes e Vidas Severinas: Corpos e Subjetividades na pandemia do COVID-19. Blog do Sociofilo, 2020. [publicado em 20 de junho de 2020]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2020/06/20/https://blogdolabemus.com/2020/06/20/mortes-e-vidas-severinas-por-lucas-faial-soneghet/
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