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Começo de partida: Theodor W. Adorno e os Elementos filosóficos de uma teoria da sociedade, por Bruna Della Torre

Por Bruna Della Torre

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Série “Teoria Crítica da Sociedade”

Segundo gostava de contar Theodor W. Adorno, Max Horkheimer tinha um cachorro que não sabia latir. Essa particularidade do bichinho incomodava-o profundamente e, ao invés de esperar um animal bem-comportado, Horkheimer passou a treinar o cão para que ele pudesse aprender a fazer aquilo que devia saber por natureza. A vida intelectual hoje, completava Adorno, sofre do mesmo problema do cachorro de Horkheimer: a incapacidade de latir é o que caracteriza a sua esterilidade. Muita técnica, muitos métodos, pouco barulho.

É com essa proposta – um pouco atrevida, um pouco animalesca e carregada do humor duvidoso de Adorno – de estimular mais latidos, que abrimos a nova série publicada pelo Labemus, dedicada à Teoria Crítica da Sociedade. A série busca acompanhar a proposta do Laboratório, que associa em seu nome teoria e mudança social, mas conferindo a essa relação um elemento específico, ligado ao marxismo e à tradição dialética. Apesar dos tempos desencorajantes, trata-se de, conforme defendeu Horkheimer em inúmeras oportunidades, assegurar a importância e a capacidade da teoria e da ação que dela deriva.

A partir de hoje, publicaremos um conjunto de análises, ensaios, resenhas e entrevistas com/sobre autores da teoria crítica considerada num sentido amplo, embora sua inspiração de base permaneça sendo a Escola de Frankfurt. Trata-se sobretudo de apresentar diferentes leituras ou aspectos menos conhecidos desses autores, bem como de defender a necessidade da abordagem trans e interdisciplinar nas ciências humanas. Além disso, a série propõe a seguinte reflexão: o que é uma teoria da sociedade?

Por isso, o primeiro texto que lançamos consiste num comentário de minha autoria ao curso Elementos filosóficos de uma teoria da sociedade, que inspira essa série. Ministrado por Adorno em 1964, o curso foi publicado postumamente. Nele, Adorno retoma uma série de dilemas enfrentados pela teoria da sociedade desde seu surgimento e repensa a função do cientista social e do teórico crítico diante desses desafios. Além disso, penso ser necessário começar essa série fazendo algumas considerações a respeito da atuação de Adorno na Alemanha durante as décadas de 1950 e 1960, durante as quais ganha corpo político e institucional seu projeto e de seus companheiros frankfurtianos. Mais do que um “comentário para especialistas”, a ideia é desfazer a imagem equivocada de Adorno como um filósofo apocalíptico, niilista e afastado da práxis política, teórica e institucional com o fito de refletir a respeito de um dos experimentos intelectuais mais ricos da histórica das ciências humanas, da qual ele fez parte, bem como foi um dos seus principais formuladores.

A proposta é que a experiência intelectual adorniana sirva de inspiração para a reformulação das ciências humanas por aqui. Atualmente, exige-se de quem faz pós-graduação nessa área uma especialização cada vez maior e cada vez mais fiel a uma disciplina, a um método, a uma abordagem. No Brasil, uma das primeiras perguntas que temos que responder em nossos seminários de pós-graduação é: por que “isto” é ciência política, antropologia, teoria literária, história etc.? Essa delimitação dos campos sufoca muitas vezes objetos que, em sua existência, não se preocupam com o pertencimento à sociologia ou à economia, mas exigem ambas e mais abordagens para sua compreensão. Além disso, a trajetória transdisciplinar ainda é vista quase como um desvio (de rota e de personalidade) por aqui. O desejo de “alcançar” o centro muitas vezes toma o lugar de um debate mais amplo, coletivo e crítico a respeito da função das ciências humanas num país periférico como o Brasil. Revisitar a experiência intelectual de Adorno e suas reflexões sobre a ciência, ainda que considerando as muitas dificuldades de cunho material, político e burocrático que temos por aqui, é descobrir também uma outra forma de pensar a prática da teoria social. Após seu retorno dos Estado Unidos, Adorno defendeu a necessidade de reconstruir o pensamento crítico na Alemanha após o nazismo. Esperamos que essa série contribua igualmente para esse debate e para o desejo de revigorar as humanidades após esses duros anos de bolsonarismo – assumindo e esperando que este esteja com os dias contados, ao menos na cadeira presidencial.

Começo de partida: Theodor W. Adorno e os Elementos filosóficos de uma teoria da sociedade

Onde agora? Quando agora? Quem agora? […] Chamar isso de perguntas, hipóteses. Ir adiante, chamar isso de ir, chamar isso de adiante

O inominável, Beckett

No início da década de 1950, Adorno retornou definitivamente à República Federal da Alemanha para continuar sua meteórica carreira docente que havia sido interrompida pelo nazismo. Ao deixar os Estados Unidos, onde havia passado um longo exílio, Adorno acreditava que ainda não havia realizado sua grande obra (cf. Claussen, 2005). As duas próximas décadas seriam marcadas por uma produtividade bastante elevada para um autor com o seu ritmo, mas também por uma intensa participação na vida pública da Alemanha Ocidental, conforme tem mostrado novas leituras de sua obra na Alemanha e nos Estados Unidos na última década. A partir de seu retorno, Adorno escreveu para jornais de grande circulação, falou no rádio sobre música, literatura, cinema, indústria cultural, política, deu inúmeras entrevistas para a televisão, proferiu palestras em ambientes extra-acadêmicos e, como novo diretor do Instituto de Pesquisa Social e professor ocupante da cátedra de Filosofia e Sociologia da Universidade Goethe atuou em diversas áreas simultaneamente.

Na filosofia, Adorno retornava à Alemanha para combater o existencialismo e seu grande representante, Martin Heidegger, a quem dirigiria uma crítica extensa na Dialética Negativa (1966). Mas foi a sociologia que Adorno escolheu como principal área de atuação (cf. Norberg, 2020: 336). Além da disputa com o positivismo, no Congresso da Sociedade de Sociologia Alemã de 1961, marcado por um enfrentamento com Karl Popper, num debate que trata de questões epistemológicas e metodológicas, mas também de uma defesa da dialética (cf. Adorno, 1975), Adorno buscou modernizar as pesquisas sociológicas na Alemanha. No exílio, Adorno se familiarizara com novos métodos de pesquisa, decorrente tanto da sua participação do “Projeto de pesquisa de Princeton sobre o Rádio”, sob a direção de Paul Lazarsfeld (Adorno, 1969), quanto de sua imersão nos estudos sobre a personalidade autoritária, uma pesquisa que até hoje é uma referência não só teórica, mas metodológica nas ciências sociais (cf. Brown, et al, 2018; Jenemann, 2020). Apesar das muitas críticas que Adorno desenvolveu a esses métodos e abordagens, ele acreditava ser necessário absorver os avanços produzidos por eles e, no início da década de 1950, desenvolveu com os colegas do Instituto uma série de pesquisas, conhecida como “experimentos de grupo”, que investigava o quão refratária a população alemã era à democracia. Desde o exílio, tratava-se de analisar as tendências autoritárias presentes nos países democráticos (cf. Ziege, 2009). Na Alemanha do pós-guerra, na qual o fascismo havia sido derrotado “de fora”, restavam dúvidas quanto à sua permanência no corpo social, ainda mais levando-se em conta que, no período de constituição da Alemanha Oriental, houve uma migração anticomunista e fascista para o lado Ocidental. A proposta de teoria social de Adorno nesse período conjuga teoria e pesquisa empírica e ambas, em conjunto, são consideradas necessárias para fazer avançar o pensamento crítico na Alemanha. Ele também se tornou presidente da Associação Alemã de Sociologia na década de 1960.

Durante esses anos, Adorno ministrou cursos e organizou seminários a respeito de inúmeros temas: dialética, estética, problemas da análise qualitativa, Simmel, Kant, Hegel, indústria cultural, ideologia, conflito social, Durkheim, materialismo, personalidade autoritária e até mesmo sobre os fundamentos empíricos de uma sociologia do riso (cf. Bobka, Braunstein, 2015; Braustein, 2021). Vários deles foram gravados, transcritos e publicados em sua obra póstuma.  Recentemente também vieram à público os seus seminários, organizados a partir de anotações dele próprio e de alunos. Em sala de aula, Adorno fazia exercícios de construção de uma “escala F” para a Alemanha, tendo em vista os problemas políticos conjunturais e locais e, utilizando Freud para refletir sobre o humor, propunha a construção de uma tipologia do riso a ser erigida tendo em vista sua relação com o autoritarismo. No curso Elementos filosóficos de uma teoria da sociedade, Adorno defende um método “experimental” nas humanidades. Segundo ele, o desejo de segurança que os pesquisadores procuram na ciência muitas vezes atrapalha o trabalho de investigação, já que não há ciência sem risco. Por isso, esse lado experimental do pensamento é elemento indispensável para a sua construção crítica. Esse tipo de reflexão é fundamental para discutirmos o papel da ciência e da universidade nos dias que correm.

Adorno fez palestras em conferências sobre programas para educação de adultos e atuou também no âmbito da pedagogia, campo que enxergava como extremamente necessário para um programa amplo de desnazificação e propunha uma nova política educacional para combater tendências antidemocráticas. Ensaios como “Educação após Auschwitz” e “Teoria da semiformação” nasceram desse contexto. O livro que reúne suas conferências, publicado em 2019 na Alemanha, mostra como as duas décadas nas quais atuou como professor foram dedicadas também ao debate público. Diversas de suas falas no rádio foram dedicadas ao tema da cultura, também destruída pelo nazismo. Segundo Michael Schwarz,

A Alemanha estava em ruínas quando Adorno voltou da emigração em 1949, e o país também estava desolado culturalmente. Era necessário trabalhar contra a paralisia do espírito, contra o baixo nível educacional, contra a atrofia da consciência histórica; era necessário trabalhar para nos familiarizarmos com as tradições que haviam sido deportadas e expulsas pelo nacional-socialismo.   Adorno falou sobre questões da reconstrução, sobre a refundação da sociologia oprimida pelos nacional-socialistas, sobre desdobramentos da Nova Música e sobre o escritor Marcel Proust, cuja recepção na Alemanha havia sido negligenciada” (Schwarz, 2020: 5).

Adorno retoma, então, à tradição cultural alemã, passando por Goethe, Hölderlin, Brecht (autor que Adorno acusava a Alemanha Ocidental de tentar domesticar), mas sem recair numa defesa idealista da Bildung que sustente que a cultura poderia ser um escudo contra o fascismo. Partindo da discussão tipicamente alemã do tema, herdada de Goethe e Humboldt, Adorno defende uma Bildung que seja também política e que permita pensar as contradições de uma sociedade cindida pelo capital.

A escrita e publicação de Prismas: crítica cultural e sociedade e das Notas de literatura, por exemplo, partilham desse espírito e mostram como seu projeto ia para além da preocupação com a demarcação de campos que persegue as ciências desde então (veja só, a esse tipo de prática canina, Adorno não era simpático). Ademais, esses textos evidenciam a relação da teoria crítica com a prática do ensaio (que é a base daquilo que Adorno entende como dialética negativa) e a preocupação com a questão da “forma” nas artes e na literatura. Mais uma vez, a tendência atual nas ciências humanas é relegar qualquer preocupação com a “forma” ao campo do formalismo e do esteticismo.

Tudo isso se combina a uma crítica incessante à indústria cultural – que não impediu a participação de Adorno nos grandes meios de comunicação do período. Há 388 gravações de áudio com Adorno em seu arquivo atualmente. Esse tema tornou-se também uma agenda de pesquisas no interior de sua própria teoria crítica. Em diversos momentos nesse período, o crítico do jazz defendia que qualquer um que desejasse se debruçar sobre a cultura e não passasse pela experiência da cultura de massas norte-americana recairia necessariamente numa teoria reacionária (cf. Adorno, 1969: 369). Reflexões sobre o cinema, o público, os esportes, a televisão, foram desenvolvidas ao longo dessas duas décadas e em interação com a opinião pública. Em diálogo com a psicanálise, crítico do revisionismo freudiano, Adorno também escreveu e debateu a relação entre personalidade autoritária, propaganda de extrema-direita e indústria cultural.

Esse período foi marcado igualmente pela preocupação com o tema da sociabilidade e das formas de vida (cf. Jaeggi, 2014), presente em Minima Moralia. A defesa de que a ciência deve correr riscos envolve igualmente um projeto mais amplo de investigação da subjetividade e da chamada vida privada. A preocupação com a cultura não era traço mandarinesco. Sua teoria da experiência conjugada com o marxismo, identificava enrijecimento e reificação – uma combinação perfeita para o fascismo.

Quando Adorno retornou à Alemanha, sob o governo Konrad Adenauer (1949-1963), o plano Marshall e uma “economia social de mercado”, o nazismo permanecia um assunto tabu. A desnazificação, que também não ocorrera no âmbito da política e das instituições, já que diversos ex-membros e apoiadores do NSDAP e do 3º Reich foram mantidos em seus cargos, formava um caldeirão que explodiria em 1968 com o movimento estudantil. Vale lembrar que até hoje o nazismo e o genocídio são assuntos políticos delicados na Alemanha. Para Adorno, tratava-se de reconstruir a memória no país e de pensar se as bases materiais e sociais do fascismo permaneciam subjacentes à democracia. Numa palestra intitulada “O que significa reelaborar o passado”, proferida no conselho das sociedades para cooperação cristã-judaica num momento em que havia uma nova onda de antissemitismo na Alemanha, Adorno afirma que “o passado só estará plenamente elaborado no instante em que estiverem eliminadas as causas do que passou. O encantamento do passado pôde manter-se até hoje unicamente porque continuam existindo as suas causas” (Adorno, 1963: XX).

A República Federal Alemã não havia acertado as contas com o passado e sua transição democrática havia sido construída a partir do sufocamento de qualquer tipo de oposição à esquerda; o Partido Comunista havia sido proibido e o SPD sofrera uma guinada conservadora para se adaptar. Nesse sentido, Adorno foi um crítico bastante contundente do ordoliberalismo alemão (Cf. Afshar, 2019) [i], que aparece também na sua forma científica com o positivismo. Adorno buscava alertar as pessoas para o perigo de uma integração produzida pelo mercado que levaria ao apagamento da contradição social fundamente do capitalismo, bem como o sufocamento dos conflitos de classe na Alemanha. Recentemente, foi publicada também sua correspondência com Hans Magnus Enzensberger, na qual ambos discutem o “programa de Godesberg” que marca o afastamento do SPD do socialismo. Enzensberger queria trazer à público a crítica de Adorno ao programa, mas Adorno fica reticente diante da ascensão de novas movimentos de extrema-direita no país – contexto no qual também comenta os “Aspectos do novo radicalismo de direita”. De qualquer forma, ainda que Adorno sempre tenha sustentado a autonomia do pensamento tanto na política, quanto na universidade, vê-se que seu projeto intelectual não estava distante das questões que moviam o país naquele momento.

As salas de aula de Adorno tornaram-se mais e mais lotadas durante essas duas décadas. No arquivo de Adorno, é frequente a presença de cartas de estudantes de toda a Europa procurando conselhos teóricos, políticos, pessoais. Sua correspondência, aliás, mostra também uma atuação intensa no debate com outros intelectuais na França, na Itália e nos Estados Unidos. O estilo de suas cartas, que permanecem inéditas em sua grande maioria, desfaz em grande parte a impressão do intelectual sisudo que se construiu ao longo dos anos. Adorno pedia para muitos de seus colegas que lessem seus textos e lhe mandassem críticas e quase sempre fazia o mesmo com afinco quando era solicitado. O esforço para ajudar parte de seus estudantes também é visível, seja com contatos, seja com ajuda teórica e bibliográfica. Nada de “torre de marfim”.  Adorno respondia àqueles que lhe escreviam e buscava dialogar com diversos setores da academia e da sociedade. Como lembra Gabriel Cohn na abertura do livro de Adorno, Introdução à sociologia (2008), também um curso, não é qualquer professor que se dispõe a ministrar aulas de “introdução” em sua maturidade – muitos no Brasil sequer aceitam fazê-lo em sua juventude e muitas vezes a pós-graduação é a única esfera considerada respeitável.

Adorno e o Instituto de Pesquisa Social cumpriram um papel muito grande ao inspirarem os movimentos da década de 1960 na Alemanha. Muitos dos líderes estudantis do período assistiram suas aulas ou eram seus orientandos. No âmbito da cultura, se passava o mesmo. Um dos fundadores do Cinema Novo Alemão, Alexander Kluge, foi por ele orientado e inspirou o texto “Notas sobre o filme” (1966), no qual Adorno repensa o cinema como possível forma crítica em diálogo com suas teorias da indústria cultural. Naquele período, conforme destaca Regina-Becker-Schmidt (2021), o Instituto era um polo de marxismo. Ele abarcava inúmeros “grupos d’O Capital”. Professoras e alunas feministas, como Helge Pross, Becker-Schmidt e Elisabeth Lenk também inauguravam um novo campo na teoria crítica nesse contexto.

A relação de sua produção intelectual com esse período docente e com a Alemanha do pós-guerra é pouco debatida por seus comentadores. O diagnóstico habermasiano de que haveria um “ceticismo desenfreado perante a razão” (Habermas, 2002: 185) e que a crítica de Adorno (e Horkheimer) da sociedade capitalista resultaria numa aporia e no fechamento das possibilidades de emancipação orientou grande parte da recepção de Adorno. Histórias da Escola de Frankfurt como a de Rolf Wiggershaus (2006), na qual a narrativa dessa experimentação teórica e política transdisciplinar culmina com Habermas, só reforçam essa visão. No Brasil, a leitura das vias habermasiana e honnethiana e a mobilização da Escola de Frankfurt como meio de distinção acadêmico por muitos de seus intérpretes contribuiu para que Adorno fosse recebido por aqui como um crítico cultural [ii] afastado do marxismo e sua produção enquanto analista da política e da sociedade, de teórico transdisciplinar, perdeu terreno diante tanto dos defensores quanto dos detratores do “pensador elitista”. Tanto é assim que o papel de Adorno enquanto um dos pais fundadores, inspirador de 1968, traço bem conhecido na Alemanha, não apareceu em sua recepção por aqui.

Não se trata aqui de contradizer toda a fortuna crítica de Adorno e negar problemas que de fato estão presentes em sua obra e trajetória. Sua recusa política da Alemanha Oriental, sua dificuldade de fazer uma crítica contundente, analítica e rigorosa do projeto socialista que ele pensava ter sido traído pelo projeto soviético, sua reticência em reconhecer a potência transformadora dos movimentos que emergiam na década de 1960, o episódio lamentável no qual chamou a polícia contra os estudantes que ocupavam um prédio do Instituto, bem como sua postura complicadíssima com relação às suas estudantes são questões que uma teoria crítica contemporânea não pode deixar de levar em conta. É preciso estudar com afinco a história do socialismo, absorvendo novas teorias críticas feministas, antirracistas, bem como os debates pós-coloniais e a respeito da sexualidade, bem como cobrar de seus representantes uma postura condizente dentro e fora das salas de aula.

Entretanto, o que busquei mostrar aqui é uma faceta não só pouco conhecida, mas apagada de Adorno, domesticada por uma teoria crítica que abandonou qualquer projeto de transformação social radical, difamou a crítica à reificação e reduziu sua tarefa ao melhoramento e ampliação da esfera pública, um conceito, aliás, estranho a Adorno. Este, junto com Horkheimer, buscou “criar na Alemanha uma ampla infraestrutura para o pensamento crítico” (Demirovic, 2004: 144), marcada pela transposição e diálogo interdisciplinar. Isso permitiu ampliar o alcance da teoria marxista – uma tarefa urgente nos tempos atuais.

A publicação recente de seus cursos e seminários talvez ajude a contribuir para uma nova leitura da teoria crítica de Adorno. É nesse contexto que surge o debate presente em Elementos filosóficos de uma teoria da sociedade. Como se vê, a pergunta pela tarefa da teoria não “paira no ar”, mas insere num contexto complexo e de disputas em relação ao destino do pensamento crítico, da universidade e da própria sociedade.

Elementos filosóficos de uma teoria da sociedade

Dos muitos cursos que Adorno ministrou nesse período, esse é um dos mais interessantes e polêmicos. Nele, a referência marxista do autor, que em seu texto é sempre evidente para quem conhece Marx, mas nem tanto para quem não é leitor da tradição dialética, é explícita. Normalmente, quando comentamos o projeto de “teoria crítica da sociedade”, desde o famoso ensaio de Horkheimer da década de 1930, “Teoria tradicional e Teoria Crítica”, a maior parte das análises recai sobre o segundo termo da frase. Rios de tinta foram escritos sobre a noção de “crítica” da teoria crítica. Nesse curso, Adorno volta suas considerações para o terceiro termo da expressão, normalmente ignorado por seus intérpretes da filosofia: a “sociedade”, ou melhor, a teoria da sociedade, revelando o componente sociológico inerente à teoria crítica.

Em Introdução à Sociologia, Adorno tematizou a problemática separação entre economia e política nas ciências humanas contemporâneas, que emula a cisão que o próprio capitalismo produz entre essas esferas e falseia a compreensão do sistema enquanto totalidade. Agora, a relação posta sob escrutínio é aquela entre filosofia e sociologia. Segundo Adorno, uma teoria da sociedade é certamente algo que envolve uma combinação específica entre ambas, na qual cada uma atua “corrigindo” a outra. Esse curso dialoga intensamente com um texto pouco comentado, escrito por Horkheimer em 1939, chamado “A função social da filosofia” (1982), no qual Horkheimer ainda mantém alguma separação entre a filosofia e as ciências. Adorno desenvolve a temática proposta por Horkheimer, mas não reconhece uma separação estrita entre ambas as disciplinas e a “função social da filosofia” passa a ser também o papel da sociologia e das outras ciências humanas que se pretendem críticas: o de construir uma teoria da sociedade.

Adorno parte do seguinte diagnóstico no curso: não há mais, nas ciências humanas, uma teoria da sociedade como encontramos em Marx, Comte, Durkheim. Por duas razões. De um lado, as ciências humanas, especialmente a sociologia, teria escanteado a teoria, aceitando-a apenas como uma espécie de “mal necessário” da disciplina. Quem deseja discutir teoria social, diz Adorno, sempre acaba sendo acusado de metafísica. Por outro lado, o desenvolvimento e aumento exponencial da complexidade social desencoraja a sua apreensão com conceitos teóricos. A perspectiva científica teria se tornado descritiva e parcial (no sentido de hiper especializada).

Trata-se de ressaltar que essa primeira questão torna-se um problema fundamental da sociologia. Esta teria, segundo Adorno, um apego enorme aos fatos por si mesmos, mas, ao mesmo tempo, seria frequentemente obrigada a ir além deles. O maior exemplo disso seria Weber. É fato conhecido que ele recusa a teorização metafísica. Os conceitos weberianos nada mais são do que instrumentos de análise. Adorno chama atenção, no entanto, para o fato de que Weber mede os fatos em contraste com o “tipo ideal” e pensa a realidade social a partir da adequação ou inadequação desses fatos em relação aos tipos, que se tornam mais importantes que o próprio objeto sobre os quais Weber se debruça. Por outro lado, afirma Adorno, seus textos teóricos e epistemológicos – nos quais, conforme lembrou Marcuse (1998), os conceitos fazem verdadeiras orgias (recaindo, aí sim, num exercício metafisico) – diferem completamente das análises presentes em seus textos sobre religião, sobre economia e sociedade, bem como na sua sociologia da música – neles uma teoria da sociedade jaz subjacente às intenções do autor. A sociedade se vinga da teoria que quer negá-la.

Adorno retoma nesse curso a crítica ao “positivismo” desenvolvida pela teoria crítica ao longo de décadas. Mas, nesse caso, conforme busquei mostrar acima, fica evidente que o combate a esse tipo de prática científica (ele também se envolve numa longa polêmica com Ralf Dahrendorf nesse período) está totalmente ligado ao contexto político e social alemão. Uma sociologia “positivista” é uma sociologia que lava as mãos diante das ameaças fascistas subjacentes a uma sociedade pseudo-integrada pelo mercado. E não apenas lava as mãos explicitamente, mas ao renunciar a uma perspectiva crítica sobre a sociedade. A ideia é mais ou menos a seguinte: quem só descreve a realidade tal como ela se apresenta, compactua com ela, torna-se apologético.

Esse curso pode ser lido, nessa chave, como uma extensa crítica ao problema da ideologia na ciência, ao enrijecimento (leia-se, reificação) da qual essa padece, tal como todos os outros aspectos da vida social. Para Adorno, positivismo é, nesse sentido, toda prática científica que pensa a teoria apenas como uma espécie de “concha” cuja tarefa é englobar os fatos. Esse positivismo tem dois lados: um apego excessivo aos dados e uma valorização excessiva da teoria “pura”. Por um lado, a ciência como coleção de dados e, por outro, a epistemologia que “não deixa a experiência dos fatos levá-la à teoria”. Com o advento dos métodos de Big Data e da modernização das pesquisas estatísticas por softwares digitais, seria o caso de refletir se a primeira tendência destacada por Adorno não se acentua cada vez mais nas ciências humanas – até mesmo na crítica literária esses métodos têm ganhado cada vez mais espaço.

O argumento de Adorno é, então, o de que uma ciência da sociedade não pode prescindir da teoria. Ele mostra como o impulso “positivista” nas ciências sociais, entendido como a tomada de parâmetro estabelecido pelas ciências hard, recai no exato oposto do ideal que coloca para si: enquanto nas ciências naturais, o objetivo “final” e mais importante é chegar a teorias, as ciências humanas – principalmente aquelas que se orgulham de seu rigor matemático – nada mais fazem do que descrever fatos, reconhecendo a importância da teoria apenas na formação de hipóteses, a serem confirmadas ou invalidadas. As ciências sociais deixaram de fazer “teoria da sociedade” para se ocupar da classificação dos fatos. Elas confiariam demasiadamente na crença cartesiana de que a construção do conhecimento de inspiração matemática é capaz de evitar o erro. Mas, ao lançar para fora de si a possibilidade de errar, elas também rebaixam as suas expectativas em relação àquilo que podem conhecer, compreender, criticar e transformar.

É verdade, reconhece Adorno, que a relação entre fatos e teoria nas ciências humanas é complexa e os primeiros não levam imediatamente à segunda e nem devem parar por aí. É fundamental para teoria social, diz ele, que ela vá para além do meramente existente. Por isso, a teoria social não pode prescindir do conceito marxiano de “tendência”. Ela deve se perguntar o que é a sociedade e para onde ela caminha (cf. 2008: 38/39). Isso não significa, diz Adorno, previsibilidade positivista, mas capacidade de pensar desdobramentos da realidade. Seu grande exemplo é Marx, que conseguiu pensar a possibilidade de um “capitalismo monopolista” num momento de capitalismo liberal. A teoria não deve alcançar apenas o existente, mas pensar aquilo que é novo, não idêntico. Aqui Adorno esclarece as origens marxistas de sua dialética negativa, encontrada no próprio Marx: “tendência é a capacidade do pensamento teórico de apreender no próprio conceito o seu não idêntico” (2008: 40).

Essa “teoria da sociedade” que Adorno comenta surgiu num momento histórico específico, que é também sua condição de possibilidade. Quando falamos em “tendência”, afirma ele, pressupomos um “sistema”. Aqui retornamos ao velho debate marxista a respeito da totalidade, cujo principal teórico foi Georg Lukács (2003). O objetivo da teoria da sociedade seria mirar a apreensão do todo produzida pelo sistema capitalista. Adorno, no entanto, faz um adendo à tese lukácsiana: o todo [Adorno utiliza a expressão “Das Ganze” ao invés de “Die Totalität”] também só existe como tendência, como desdobramento, como “ponto de fuga” (2008:41) Interessante notar a referência que Adorno tira da pintura para corrigir a dialética onipotente de Lukács. O ponto de fuga, constituído a partir de linhas paralelas que dão origem à perspectiva, é aquilo que permite representar bidimensionalmente algo tridimensional. Aqui Adorno alude às retas paralelas, cujo encontro se dá no infinito. A totalidade, como o ponto de fuga nessa concepção, é algo que se mira sem que ele seja plenamente apreendido ou representado. Se fomos recorrer a uma outra formulação, seria possível afirmar, nesse sentido, que o método dialético constrói perspectiva na sociologia ao reconstruir de forma tridimensional uma sociedade que se apresenta como unidimensional, para usar a expressão de Marcuse (2015).

Adorno sugere ainda que “sociedade”, “totalidade” e “tendência” são conceitos imanentes ao capitalismo (expressões teóricas de uma formação histórica, conforme a tese de Lukács), por isso este último é, conforme exposto acima, sua condição de possibilidade. A teoria surge, diz Adorno, como sistema da sociedade. O primeiro grande teórico da sociedade teria sido, nessa chave, Adam Smith e o primeiro momento histórico no qual a teoria surgiu, o liberalismo e a revolução industrial. Essa unidade foi dada por um sistema de trocas generalizado. De um lado, diz Adorno, havia teoria social positiva: Smith, Ricardo, Comte. De outro, teoria social negativa, ou teoria crítica: Marx e Engels. Mas pelo menos, entre elas, enfatiza Adorno, reinava um consenso: o reconhecimento de um contexto internamente congruente de caráter objetivo –acordo esse que não existe mais nas ciências humanas hoje. Basta pensar nas concepções de “verdade” que hoje estão na moda, como a de autores como Bruno Latour ou Markus Gabriel.

Adorno sublinha ainda que o elemento negativo da teoria de Marx consistiria justamente em demonstrar que essa unidade do sistema não emana dele próprio, não é convincente. Marx mostra que o sistema, ao se realizar, produz o seu negativo e não é garantidor de liberdade, igualdade e fraternidade como prega o liberalismo. Ele se converte no seu contrário. Uma sociedade desigual, sem liberdade e cuja concorrência solapa a solidariedade pressuposta na ideia de fraternidade. Mas essa teoria da sociedade de Marx, com o desdobramento das múltiplas contradições sociais a partir das quais ela se constitui, se tornou problemática: quanto mais desdobrado o capitalismo, mais opaca a realidade social se torna. Isso é, ela resiste, por sua complexidade, à teorização (especialmente se essa teorização pretender-se linear e não-contraditória). A dificuldade de apreender esses processos, diz ele, e a falha das ciências humanas em fazê-lo, indispõem ainda mais as pessoas com as teoria social.

Para refletir sobre as possibilidades de uma teoria contemporânea da sociedade – exercício que realiza ao longo de todo o curso, Adorno ressalta algumas mutações na sociedade mercantil tal qual descrita por Marx. Seria preciso, em primeiro lugar, levar em conta o intervencionismo estatal do Estado keynesiano que vai mediar a concorrência produzindo uma “sociedade com garantias”. Com o neoliberalismo, isso certamente caiu por terra. Todavia, se quisermos atualizar essa ideia de Adorno, podemos afirmar igualmente que os processos de financeirização da economia que se tornaram predominantes sob o neoliberalismo, o boom das plataformas digitais e uma economia organizada em torno de algoritmos tornam o processo social ainda mais opaco e acentuam as tendências monopolistas apontadas por Marx, a ponto de certos autores defenderem que vivemos agora sob um modo de produção tecno-feudalista (Durand, 2020).

O que é interessante notar no curso é que Adorno está o tempo todo tentando associar os desdobramentos de uma mutação do capitalismo (por exemplo, a mudança da relação entre Estado e mercado sob o Estado de Bem-estar) a mudanças em outras esferas. Não é por outra razão que ele segue diretamente para uma consideração a respeito da transformação do proletariado sob esse capitalismo. Não é o caso de retomar seu argumento ponto a ponto, mas ele se refere, nesse curso, a uma das teses mais polêmicas e mal compreendidas da Escola de Frankfurt, especialmente no âmbito do marxismo: a tese de que a integração material do proletariado teria levado a uma integração de sua consciência e, portanto, esvaziado o poder revolucionário da classe nos países do centro do capitalismo.

Adorno comenta as pesquisas de Ludwig von Friedeburg sobre “o ambiente de trabalho” na região do vale do Ruhr, realizadas em conjunto com o Instituto de Pesquisa Social – o que denota o interesse do Instituto pelo tema sociológico do trabalho, hoje muitas vezes também pensado fora de uma perspectiva mais geral sob o capitalismo nas vertentes dominantes da sociologia) e chama a atenção para, especialmente no caso da Alemanha, um esvanecimento da consciência do proletariado de sua condição de proletário. Adorno afirma que embora os trabalhadores mantenham o vocabulário marxista difundido pelos partidos, elementos como “capital” e “trabalho” são tomados como naturais. Nesse contexto, apesar da mobilização de um vocabulário que exige mediações e reflexão a respeito da formação social capitalista, tanto aquilo que “é ruim”, quanto aquilo que “é bom”, diz Adorno, não é visto pela classe trabalhadora como processo social, mas como fruto da ação de uma pessoa e um grupo de pessoas. Ou seja, por meio do “concretismo” da “personalização”, o boom econômico da Alemanha, por exemplo, diz Adorno, é visto como produto atuação de políticos específicos e não atribuído à reconstrução de um país bombardeado e completamente destruído pela guerra. É claro que os trabalhadores experimentam a dominação social de forma direta por meio dos gerentes e chefes das empresas nas quais trabalham, Adorno reconhece, mas o salto necessário para a compreensão do processo social que gera essa dominação não ocorre. A política permanece toda ela “personalizada”. Esse processo seria agravado pelo aburguesamento da classe trabalhadora, especialmente no âmbito da consciência. Esse aburguesamento da classe trabalhadora ou a sua identificação com figuras não-proletárias – o que dá no mesmo – faria com que os trabalhadores passassem a olhar uns para os outros, afirma Adorno, como competidores. Aqui Adorno pratica a teoria da sociedade que defendia em Marx: ele antevê, com quase duas décadas de antecedência, aquilo que se tornaria norma sob o neoliberalismo, a concorrência generalizada na base da pirâmide social. Ele fala num processo de “re-privatização da consciência” na sociedade alemã do pós-guerra. Além da indústria cultural, que é o “cimento social” que mantém a sociedade unida, como Adorno vai afirmar em diversos de seus textos do período sob o tema, essa re-privatização da consciência, essa integração da classe trabalhadora se dará também pela via do consumo – mas não no sentido estereotipado que os detratores do argumento costumam utilizar, “se o trabalhador ganhar uma geladeira, ele não será mais revolucionário”. Mas no sentido de que toda a experiência social será reduzida ao concretismo mais imediato. Nesse sentido, o “fetichismo da mercadoria” como inversão entre sujeito e objeto do processo social, desenvolve-se como um consumismo que vai passar a ser a única forma de relação social possível nos países centrais. Adorno cita o romance Admirável mundo novo, de Aldous Huxley: “conversar é discutir mercadorias”. Esse concreto hoje, segundo Adorno, são as mercadorias, os bens de consumo aos quais as pessoas estão ligadas. A consciência reificada se conecta ao fetichismo da mercadoria: a consciência se conecta ao que as coisas representam no mercado e no que essas coisas de fato representam para as pessoas.

Nesse sentido, a dificuldade de construir uma teoria da sociedade contemporânea, no entanto, alerta Adorno, não se deve unicamente à crescente complexidade social do capitalismo tardio. O problema não reside no fato de as pessoas não conseguirem compreender o fundamento econômico de sua dominação. Na verdade, segundo o argumento de Adorno, a disparidade de forças sociais é tão grande que a ideia de “resistir” parece ilusória. Isso criaria um ciclo vicioso: as pessoas se sentem impotentes e aí se tornam ainda mais impotentes. E esse processo, que explica em parte a apatia política da esmagadora maioria da população naquele período, estaria igualmente presente na ciência. A compreensão desses processos – que deve percorrer uma teoria da sociedade – é dolorosa, por isso muitas vezes, inclusive no âmbito das ciências humanas, é preferível apegar-se ao imediato, ao concreto. Para Adorno, o positivismo é uma das formas que a ideologia assume no âmbito da ciência e uma forma especialmente perigosa, pois se pretende justamente isenta de qualquer vínculo ideológico. Seu apego aos “fatos” por si só é tão metafísico, quanto a metafísica que o positivismo diz recusar. A desideologização da ciência hoje seria sua própria ideologia.

Como a classe trabalhadora, os cientistas teriam se resignado à condição de empregados. Embora a acusação seja forte, trata-se de um movimento altamente compreensível. Há uma analogia entre o que ocorre com a classe trabalhadora e as tendências dominantes nas ciências humanas. Para sobreviver numa sociedade como a que vivemos, é preciso estar quase morto, diz ele. A ciência padeceria nesse contexto daquilo que Erich Fromm havia designado como “medo à liberdade”, diz Adorno. As pessoas não só não decidiriam o seu próprio destino, mas se apavorariam diante dessa ideia uma vez que nossa sociedade imporia uma falsa escolha entre liberdade e segurança. E essa necessidade de segurança faria as pessoas rejeitarem a teoria da sociedade. A integração que Adorno descreve da classe trabalhadora seria ainda mais intensa no âmbito científico. A teoria torna-se refém da necessidade de segurança do conhecimento: a predominância da descrição, da coleta de dados e a hipóstase do método serão algumas das formas que esse “concretismo” vai aparecer na ciência. Seria igualmente possível mencionar aqui, embora Adorno não o faça, que as tendências de concorrência generalizada presente na classe trabalhadora também tomam conta do âmbito científico, prejudicando projetos coletivos e colaborações.

Assim, Adorno dirige uma crítica à fetichização ciência, por meio da hipóstase do método. As ciências humanas estariam sempre à procura de um método que vai solucionar todos os problemas, que vai servir para tudo. A estatística, o Big Data. Haveria um culto do método per se, diz Adorno – desvinculado das perguntas que com a sua ajuda a ciência deveria buscar responder. Com isso, essas ciências se tornaram submissas em relação ao método. Daí o fetichismo: elas se tornam refém, objeto de seus métodos, que assumem o seu lugar. Mesmo a escolha dos temas de estudo nas universidades passa a depender dos métodos disponíveis e da existência de um possível interesse metodológico no assunto. A aniquilação da teoria tem como contrapartida uma predominância do empírico que evidencia a supremacia do pensamento técnico diante do objeto sobre o qual se debruça.

O fetichismo da ciência assenta-se na predominância de um método que foi declarado útil por si próprio e cultivado por isso. Isso, diz Adorno, aniquila a naiveté: a capacidade de latir. Esse tipo de prática, mais do que produzir profissionais da ciência, fomenta uma inteligência técnica, automatizada. Adorno cita como exemplo o American Journal of Sociology: revista que publicaria artigos que recorrem aos métodos mais avançados do mundo, com matemática mais sofisticada, mas com resultados medíocres.

A grande tarefa do pesquisador das ciências humanas seria, então, re-adquirir essa naiveté, entendida como capacidade de deixar o objeto emergir, conseguir observar o que nele não se encaixa nas categorias pré-formadas. O que Adorno quer dizer é que muitas vezes o treinamento científico em ciências humanas inibe determinadas capacidades de perceber os objetos de análise. Isso é saber latir, saber resguardar aquilo que a formação não deformou. Logo, a espontaneidade seria um pré-requisito fundamental um comportamento sociocientífico, diz Adorno. Pois o pensamento contém um elemento subjetivo que não pode ser eliminado pela ciência. Esse lado subjetivo é o reconhecimento da relação com o objeto. Esse é um dos grandes temas da dialética negativa de Adorno, que visa apreender seus objetos sem violentá-los, preservando o elemento especulativo inerente ao próprio processo do conhecimento. Lá ele vai recorrer a uma noção de “segunda ingenuidade”, que retira da obra de Proust, para refletir sobre a relação do conhecimento com seus objetos, uma ingenuidade que é atingida pelo esforço constante de manter a capacidade infinita e indiferenciada de se deixar afetar pelo objeto, de manter o frescor das aparências e de evitar explicações causais precipitadas e pré-concebidas. Trata-se de uma experiência cuja capacidade de reação ainda não foi podada, que é capaz de estranhar e se distanciar da realidade (justamente ao torná-la mais próxima). O erro é parte desse processo, assim como a experimentação. Em vários momentos de sua obra, Adorno vai pensar a “burrice” como enrijecimento da percepção, incapacidade de experiência e não como falta de instrução ou coisas do tipo.

Além disso, outro ponto ressaltado por ele no curso – e que nos interessa aqui – é a crítica da ideia, ainda vigente, de que se uma teoria não oferece uma saída para um estado de coisas, ela não presta para nada. Uma teoria da sociedade, diz ele, deve saber captar processo contraditório da sociedade ela mesma, incorporar o que a nega e expressar

o todo e a unidade da sociedade, mas igualmente mostrar como esse todo se reproduz, mas com antagonismos. Para isso, a teoria deve ao mesmo tempo ser um sistema e não o ser. Seria possível afirmar, nessa chave, que teoria que apenas ressaltam o lado sistemático da sociedade (Parsons, Luhmann) seriam tão ideológicas como as que recusam qualquer sistematicidade (e nesse âmbito se desenvolveria alguns anos depois todo o debate do pós-modernismo como recusa da totalidade). De qualquer forma, uma teoria da sociedade, defende Adorno, deve reconhecer e expressar a irracionalidade que brota da racionalidade. Mais uma vez, Adorno recorre a Marx para explicar. Ele vai dizer que Marx soube demonstrar como princípio da igualdade sob o capitalismo se desdobra em desigualdade. Se pensarmos, por exemplo, na tese de Marx a respeito da justiça e injustiça simultânea da “troca de equivalentes” na relação de assalariamento, seu argumento é ainda mais compreensível. A realidade que a teoria tem que apreender é ela própria contraditória. Por isso, não há diferença fundamental entre sociologia e filosofia. Sendo assim, podemos afirmar que isso já é visível também na obra de Marx, apesar de suas críticas à filosofia. O que ele faz, ao menos em sua obra madura, é algo que nasce da crítica simultânea da sociologia e da filosofia, mas que as incorpora como elementos fundamentais da dialética. A separação entre o econômico e o social (e o político) que fazem alguns sociólogos defender conceitos sociológicos “puros” faz com que esses conceitos tornem-se ideologia. Adorno discute no curso, como isso fica evidente no conceito de “burocracia”, que não pode ser entendido sem referência ao processo de produção. Vale lembrar mais uma vez que não se trata de uma postura anti-método, ou anti-empirista, mas ao contrário de uma defesa de que entre teoria e pesquisa empírica não há contradição e que devem ser, as duas, fomentadas, melhoradas, autocorrigidas.

Adorno não queria seus cursos e palestras publicados. A diferença entre a palavra escrita e a falada não era, para ele, apenas uma questão de registro linguístico. Seu modo de escrever, bem como a mobilização do ensaio, estavam intimamente ligadas à sua concepção de ciência e de crítica da ideologia. Felizmente para nós, no entanto, esses materiais têm aparecido nos últimos anos e permitido compreender um pouco mais a maneira como pensava Adorno, seu método de reflexão e ensino. Nesses cursos, brilha com toda força o intelectual que pensa contra si mesmo. Para quem lê, isso é, à primeira vista, insuportável. Os cursos, palestras e seminários de Adorno, ao contrário do que ele pensava, resistem à uma sistematização fácil assim como qualquer outro de seus escritos. Ao contrário do que pode parecer, seguir as contradições do próprio objeto, saber latir, exige a disciplina constante de não se acomodar na relação com ele, com métodos e teorias que possam garantir aquele conhecimento claro e preciso que buscava Descartes. A teoria da sociedade é um exercício de enxergar nas sombras, seu objetivo último da crítica é percorrer e penetrar a opacidade do real, para nele descobrir fissuras. Não é fortuito que apesar da tese da integração, que envolve uma reflexão sobre a economia, o Estado, as classes, Adorno salienta o tempo todo que essa identidade entre indivíduo e sociedade é falsa. Em Introdução à sociologia, ao comentar Durkheim, ele afirma que sua teoria guardaria um momento de verdade ao demonstrar que a sociedade pode ser pressentida onde dói. As fissuras do sistema capitalista não se apresentam apenas como luta de classes, mas se manifestam nas inúmeras formas de sofrimentos e neuroses que o sistema produz. Como na sociedade, trata-se de também procurar essas brechas na ciência, para que o pensamento reganhe a força revolucionária que um dia possuiu. Nossa partida ainda não chegou ao fim.

Notas

[i] Conforme recupera Yasmin Afshar, quando Adorno retorna para a Alemanha, o sociólogo Alexander Rüstow publica o artigo “Economia   social   de   mercado   como contraprograma em reação ao comunismo e ao bolchevismo” [Soziale Marktwirtschaft als Gegenprogramm gegen Kommunismus und Bolschewismus], base teórica do programa de reconstrução da RFA (Afshar, 2019: 6). A “economia social de mercado” era claramente anticomunista e buscava reconstruir a Alemanha Ocidental a partir de um pacto entre as classes sociais que teria efeitos bastantes nocivos para a resolução dos problemas políticos da Alemanha nos anos posteriores. 

[ii] Ainda que Florestan Fernandes tenha citado os estudos sobre a Personalidade Autoritária e Fernando Henrique Cardoso o tenha absorvido em seus cursos, de acordo com o depoimento de Gabriel Cohn (2006), essa vertente da teoria crítica não obteve grande recepção no Brasil no sentido de criar um campo de estudos como foi o caso da estética e da filosofia. Salvo engano, a teoria crítica inspirada na primeira geração da Escola de Frankfurt ainda pena para ser reconhecida enquanto um campo de estudos sociológico ou político.

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Para citar este texto: TORRE, Bruna. Começo de partida: Theodor W. Adorno e os Elementos filosóficos de uma teoria da sociedade. Blog do Labemus, 2022. [Publicado em 05 de julho de 2022]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2022/07/05/comeco-de-partida-theodor-w-adorno-e-os-elementos-filosoficos-de-uma-teoria-da-sociedade-por-bruna-della-torre/

1 comentário em “Começo de partida: Theodor W. Adorno e os Elementos filosóficos de uma teoria da sociedade, por Bruna Della Torre

  1. chenrique27

    Excelente trabalho!!!!

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