Por Patrick Pharo (CNRS)
Tradução: Diogo Silva Corrêa
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O presente texto é uma tradução do prefácio e do primeiro capítulo do recém publicado livro do sociólogo Patrick Pharo, Le capitalisme addictif (https://www.puf.com/content/Le_capitalisme_addictif), pela Presses Universitaires de France (PUF). Agradecemos ao Patrick e à PUF pela autorização da publicação da tradução do presente texto. Cabe dizer que ele integra um conjunto de textos que o Blog do Sociofilo está publicando em homenagem aos cinquenta anos de Maio de 68.
Prefácio
Em seu período clássico, o dos empreendedores calvinistas do século XVIII, o capitalismo foi descrito por Max Weber como um processo de racionalização da economia e das atividades humanas. A interpretação que proponho neste livro, a partir de uma série de filmes que exprimem uma consciência crítica difusa, é que o capitalismo se tornou um processo viciante coletivo, no sentido de um vício social em uma forma de vida marcada pela otimização e especialização extrema das atividades, a corrida compulsiva pelo dinheiro e pelo sucesso, o consumo exagerado de mercadorias, o esgotamento dos recursos naturais, a corrupção da democracia… e um sentimento de condenação da sociedade como um todo pelas consequências ecológicas e sociais dessa forma de vida, que se assemelha ao “macaco” que, segundo William Burroughs, “atormenta a nuca do viciado em drogas”. Longe de contradizer o processo de racionalização, este processo viciante seria sobretudo a conseqüência paradoxal, notadamente na economia e no trabalho cujos fins racionais comuns são tragados pela hiper-racionalização da busca pelo ganho ou pelo sucesso. Essa situação torna cada vez mais precário o movimento de emancipação iniciado pela filosofia do Iluminismo e renovado no século XX pelos principais movimentos, como a Frente Popular, o projeto político de Libertação e a revolta de Maio de 68, os quais serão frequentemente objeto de questionamento neste livro.
A ideia de um processo viciante torna possível explicitar essa consciência crítica contemporânea em funcionamento em diversas produções culturais e, em particular, no cinema, que será a minha principal fonte de dados aqui. Ela também permite designar os alvos atuais da emancipação que ainda se concentram, como no século XVIII, nas liberdades básicas: consciência, expressão, opinião, reunião, associação… e nas igualdades sociais e políticas a serem promovidas independentemente do gênero, da origem étnica, do status social, da religião.., tanto uns como outros estando, ao contrário do que pensávamos, longe de serem definitivamente adquiridos. Esses alvos, contudo, também se concentram nos meios individuais e coletivos de proteção não apenas dos preconceitos culturais e morais, mas também dos incentivos ao dinheiro, ao mercado, à tecnologia ou à segurança, que encerram os sujeitos em uma rede cada vez mais densa de dependências ao mesmo tempo motivadas e invasivas. De modo distinto às drogas, o dinheiro, o mercado, as tecnologias ou a segurança não são intrinsecamente prejudiciais – muito pelo contrário, é em razão de seu caráter atraente e gratificante que são procurados. Mas, como as drogas, a maneira como deles fazemos uso pode ser prejudicial, em caso de uso compulsivo e perda de controle. É, em minha opinião, desses usos que a consciência crítica contemporânea gostaria de emancipar a sociedade, com o objetivo de ampliar as liberdades e as igualdades clássicas, mas também de promovendo novas concepções de liberdade e igualdade em termos de desejo íntimo, de disposição do próprio corpo, de orientação sexual, de consumo psicoativo, de modo de reprodução, de estilo de aparição pública, de mobilidade geográfica e de acesso a bens básicos. Tal é, de modo sumário e resumido, o assunto deste livro.
A liberdade de Maio de 68 e o capitalismo
Em 3 de maio de 1968, no pátio da Sorbonne, eu estava por acaso perto da porta dupla do corredor da grande galeria (chamada de galerie des Lettres), quando vi de repente surgir um primeiro policial todo de preto, depois outro e outro novamente. Essa aparição tinha algo de estranho e obsceno ao mesmo tempo, como uma mosca em uma tigela de leite, uma tarefa duvidosa sob um divã. Os policiais, cada vez mais numerosos, entravam no pátio e, embora estivessem bem-humorados, logo nos cercaram para nos empurrar progressivamente para os degraus da capela onde haviam ocorrido as intervenções políticas. Nós estávamos lá desde o começo da tarde para esperar os fascistas que eram nossos inimigos na época, mas cujas incursões nunca tinham ido além do liceu Louis le Grand. Em vez dos fascistas, encontramos policiais que ficavam cada vez mais nervosos com os clamores do protesto oriundo do boulevard Saint-Michel.
Em 68, a polícia simbolizou tudo o que a juventude estudantil, e talvez de grande parte da sociedade, rejeitava: a autoridade arrogante dos mestres e patrões, o colonialismo e as guerras imperialistas, o passado fascista e colaboracionista do país… O que os militantes reunidos no pátio da Sorbonne exigiam (todos os componentes estavam lá, exceto os marxistas-leninistas da UJCML, que estavam na rua Ulm, mas mesmo alguns deles vieram ajudar os manifestantes do Quartier Latin) era sem dúvida menos claro, mas girava em torno de uma inversão radical da ordem social, uma espécie de parúsia revolucionária cujos trabalhadores e camponeses, seus irmãos desconhecidos, seriam os principais artesãos e beneficiários[1].
O combate não continuado
Ao contrário do que a evocação anterior poderia sugerir, o livro que se abre não trata diretamente de Maio de 68 nem da iminência de um cinquentenário que anuncia o pior em termos de comemorações e publicações. Ele diz respeito, sobretudo, à explicitação e ao destino na cultura política liberal de um princípio de emancipação ou, numa linguagem mais contemporânea, de liberação das tutelas e de igualdade de condições[2], que se manifestou fortemente em 1968 através da mobilização de milhares de estudantes e trabalhadores que fizeram reviver a tradição da Revolução Francesa, da Libertação e da Frente Popular. Os conteúdos clássicos deste princípio, relacionados com a filosofia Iluminista e o liberalismo político do século XVIII, são bem conhecidos: democracia, liberdade de expressão e de pensamento, tolerância religiosa, liberdade individual, autodeterminação política dos povos, igualdade sexual e racial…[3] Meu projeto consiste em atualizar esses conteúdos a partir de uma pesquisa de sociologia moral aplicada principalmente à produção cinematográfica, sobre as razões que impossibilitaram a realização do famoso “combate” que seria sempre preciso, de acordo com o slogan da época, “continuar” (“Isto é apenas um começo…”). Essas razões têm a ver, na minha opinião, com as formas viciantes que o desenvolvimento da democracia liberal assumiu ao longo dos últimos cinquenta anos, com a hiper-racionalização da busca do ganho na economia, o consumo exagerado de mercadorias em todas as áreas vida social e seus efeitos deletérios sobre a divisão do trabalho e a utilização dos recursos naturais, o excesso de enriquecimento e um excesso de poder dado a uma pequena minoria aristocrática, a vigilância compulsiva de toda a sociedade a partir das novas ferramentas de gestão e de controle, bem como o sentimento de um fracasso desta forma de vida liberal dando origem a todos os tipos de reações desiludidas ou hostis, incluindo o retorno à ordem moral e religiosa.
Se nos ativermos às definições do dicionário: se liberar das tutelas, de um estado de dependência e de preconceitos de uma época[4], o tema da emancipação é, sem dúvida, o que melhor dá conta das reivindicações libertárias e igualitárias dos militantes de 68. Retomado no século XX pela interpretação do marxismo da teoria crítica da Escola de Frankfurt (Horkheimer, depois Habermas), o “interesse pela emancipação” nada mais é, de fato, do que um desejo de libertação moral e prática, que passa de um estado anterior de sujeição para um estado posterior de liberdade recuperada, para si mesmo tanto quanto para os outros. Ora, é bem a esperança de uma emancipação ao mesmo tempo íntima e social de tutelas, preconceitos e dependências que levou os militantes/ativistas de 68 a querer inverter de ponta à cabeça o mundo das autoridades repressivas, da servidão dos povos do mundo ou da opressão dos trabalhadores da indústria. Os eventos quase-insurrecionais e totalmente inesperados do Maio francês também ecoaram movimentos que compartilhavam a mesma inspiração emancipatória em um grande número de países, especialmente nos Estados Unidos, com os movimentos contra a guerra do Vietnã e as discriminações acadêmicas, e para os direitos civis dos negros e das minorias[5].
Esta inspiração tem pouco a ver com o individualismo anti-subjetivista e anti-humanista a que se quis associar um suposto “pensamento 68” extraído de alguns teóricos famosos e, para dizer a verdade, pouquíssimo lidos pelos ativistas da época[6]. Também tem pouco a ver com esse “individualismo possessivo” associado às formas mais virulentas do capitalismo financeiro ou a uma redução da liberdade “à satisfação imediata do desejo”, a que se contrapõe, sob o modelo das campanhas conservadoras contra o sexo e as drogas, um virtuoso “domínio das paixões”[7]. Esse tipo de interpretação não tem nada a ver com os envolvimentos morais e políticos da época, que não eram realmente individualistas ou egoístas, como evidenciam, por exemplo, o estabelecimento de estudantes na fábrica ou a renúncia de alguns a carreiras brilhantes. Essas interpretações só aumentam a dificuldade de se repensar hoje o ideal emancipatório do Iluminismo. Que as classes ricas tenham efetivamente renunciado ao ascetismo dos primeiros empresários calvinistas em prol de um gozo imoderado de seus privilégios certamente diz algo sobre a evolução do “espírito do capitalismo”, mas absolutamente nada sobre o espírito emancipatório do próprio Maio de 68. E a expansão em todas as camadas sociais, mas sobretudo das classes mais abastadas e educadas, da contracultura libertária e anti-autoritária do movimento de Maio de 1968, não é suficiente para torná-lo responsável pelo individualismo glutão com base no qual representa-se agora a evolução das democracias liberais.
A expansão da contracultura dos anos 1960 também poderia dar a impressão de que uma grande parte das esperanças emancipatórias da época haviam sido alcançadas: declínio geral do autoritarismo, liberalização dos costumes e da sociedade, liberação jurídica e prática das pessoas, mulheres e minorias, reformas universitárias e declínio o mandarinato, apologia da “autonomia” e a iniciativa dos trabalhadores nas empresas, descolonização e independência dos Estados, colapso do sistema soviético[8]… No entanto, com o benefício da retrospectiva, podemos ver que alguns rumos eram de fato muito próximos e que uma vez realizados, ou supostamente realizados, o caminho para a emancipação revela-se infinitamente mais longo, incluindo tudo o que diz respeito à liberalização da sociedade ou à independência dos Estados. Em vista das pressões recorrentes de ordem moral, da secessão social das elites pelo dinheiro, ou dos controles insidiosos que, no trabalho e na vida cotidiana, tomaram o lugar dos velhos métodos autoritários e disciplinares, nós todos temos razões para sermos circunspectos sobre a realidade e a profundidade do processo de emancipação após maio de 68.
Apesar das comemorações oficiais, com a sua procissão de retomadas e interpretações contraditórias[9], o espírito emancipatório que animou o movimento estudantil e o movimento operário em 1968, com sua imensa greve geral, perdeu o seu vigor na cultura política contemporânea, à direita, é claro, mas também à esquerda, sob o efeito de uma erosão dos ideais políticos do Iluminismo: liberdade, igualdade e progresso social. Após a queda do muro de Berlim e a conversão universal dos países à economia de mercado, e apesar dos protestos dos “autônomos” ou dos altermundialistas, nada conseguiu minar a impressão dominante de que a igualdade e o progresso social, em particular, não faziam mais parte das perspectivas futuras e próximas das sociedades humanas, enquanto o aparente avanço das liberdades, pelo menos nos países euro-atlânticos, ocultava, ao contrário, formas muito mais sérias de subjugação. Quanto aos atuais esforços dos novos responsáveis políticos por tentar reinventar a ideia de progresso, eles ainda estão longe de ter compreendido as razões de seu eclipse.
A erosão do projeto de emancipação de Maio de 68 apareceu pela primeira vez como um efeito indireto do radicalismo ontológico que tinha levado os militantes de 68 a querer se emancipar do mundo tal como ele é em sua totalidade. A ruptura “angélica”[10] com o mundo que parecia ser, de fato, nada mais do que um sonho teológico, sua implementação parecia inevitavelmente implicar no recurso a uma violência intolerável, como foi confirmado pela descoberta (tardia) ao longo dos anos 70 dos massacres associados à Revolução Cultural Chinesa e à ditadura comunista no Camboja. Essa tomada de consciência certamente favoreceu a/o grande retirada/recuo do político observada/o após Maio de 68, ou pelo menos de uma política concebida como reversão radical da sociedade e da cultura, e não como uma reforma homeopática do existente.
O declínio do radicalismo revolucionário também pode ser atribuído ao confronto dos ativistas com as glutonarias de uns e as vulnerabilidades de outros, reveladas pelas empresas comunitárias no pós-maio, e, de modo mais geral, por esta corrida chamada “individualista” pelos prazeres e pela auto-realização, do qual uma multiplicidade de ensaios deu conta sob o título geral de “pós-modernismo”[11]. De acordo com uma narrativa repetida infinitamente, os maliciosos prosperaram, especialmente no empresas culturais, políticas e industriais[12], enquanto que os sinceros (sincères) entraram em colapso, notadamente nos setores radicalizados da classe trabalhadora e entre os admiradores dos novos pequenos mestres ou gurus, sem mencionar as mulheres, eternas vítimas da dominação masculina. Em geral, concluiu-se de tudo isso que Maio de 1968 teria favorecido a emancipação individual (de alguns) em detrimento da emancipação coletiva (de todos). O que é um paradoxo, já que o projeto de Maio de 68 foi de fato tão igualitário quanto libertário[13], coletivo, social e solidário quanto íntimo e pessoal, se o julgamos, pelo exemplo, a partir do tropismo que continuamente impulsionava os estudantes a tentarem aproximar-se das classes populares.
De modo mais geral, seguindo uma crítica social que hoje impulsiona as novas contestações políticos e atravessa uma infinidade de produções culturais, cinematográficas em particular, a principal causa da interrupção do movimento emancipatório dos anos 60 estaria ligada a uma alienação coletiva da sociedade aos mitos e aos benefícios das democracias liberais, de onde essa crítica recorrente do “liberalismo” que hoje atravessa boa parte da esquerda, sem nunca especificar de qual liberalismo se trata (econômico? político? prático?) – como se o retorno ao despotismo, ao autoritarismo ou a um estrito dirigismo econômico pudesse ser uma panaceia, até mesmo somente uma via praticável. Por ter provado demasiadamente os frutos da explosão tecnológica e mercadológica, as democracias liberais teriam chegado na beira de uma implosão autodestrutiva que torna os indivíduos cada vez menos capazes de exercer as liberdades que estão no princípio dessas sociedades.
Vícios individuais e coletivos
Ora, de acordo com a interpretação que eu gostaria de propor desta crítica, a alienação coletiva em questão revela cada vez menos uma “falsa consciência”, como diz a tradição marxista, sujeita às ilusões da ideologia e às falsas promessas do capitalismo, da qual uma nova consciência revolucionária, ao mesmo tempo social e ecológica, seria suficiente para nos libertar – como evidenciam a extrema lucidez e a inquietação bem fundamentada dos habitantes da Terra sobre o futuro de sua forma de vida. Ela revela menos ainda um imobilismo burocrático, prejudicial à inovação e ao emprego, que poderia ser resolvido por outro tipo de “revolução”[14] modernista e supostamente progressista, até mesmo igualitária em sua intenção[15]. Pois o que realmente confere todo o poder a essa alienação é um processo viciante coletivo que nutre em cada um de nós um desejo irreprimível por bens e formas de vida que sabemos bem que nos acorrentam, ainda que nós os alimentamos por nossos próprios desejos e práticas, tornando o sujeito mais íntimo o melhor aliado dos poderes externos.
Que a tomemos efetivamente em seu sentido psicopatológico de dependência a um hábito nocivo, ou no sentido etimológico de condenação, em particular da criação de uma dívida, o conceito de vício parece adequado para dar conta do estado moral das democracias liberais, e, em particular, deste sentimento de busca acelerada compulsiva e de perda de controle que se expressa em muitas obras culturais e cinematográficas. Ao contrário da falsa consciência, que se baseia em uma ilusão ideológica, um processo viciante é calcado em desejos e hábitos de vida prática cujos objetos visados são integralmente conscientes (a recompensa, o dinheiro, o ganho, o sucesso…), mas incontroláveis, ou em qualquer caso, muito difícil de serem reformados quando estão enraizados na mecânica do desejo. Para emancipar-se de um vício, não basta estar ciente dele, é necessário ainda poder modificar a ordem de seus desejos e seu enquadramento da vida.
Se esta hipótese estiver correta, o grande obstáculo a ser enfrentado pelo desejo de emancipação seria menos a “servidão”, como nos dias de La Boétie e da crítica subsequente do Iluminismo, e mais a dependência, a qual envolve um objeto do qual nos tornamos dependentes pelo desejo, e não pelo fascínio ou medo que ele suscita. Essa dependência não foi desejada por ninguém, menos ainda pelos ativistas de 68, pelos que usavam drogas ou faziam experimentos limítrofes ou por aqueles que se envolviam em empreendimentos pessoais e sociais, lucrativos ou não. O vício não é, de fato, um estado procurado por aqueles que a ele são submetidos, mas uma consequência não intencional e infeliz de outros fins buscados. Esta é a razão pela qual a noção de vício oferece um modelo antropológico que permite repensar a evolução recente das sociedades liberais e compreender, em particular, como fomos capazes de sair da era das submissões impostas por poderes externos: chefes e governantes, como ainda era o caso do movimento trabalhista no século XIX e durante uma boa parte do século XX, para aquela das dependências motivadas pelo desejo íntimo: a capacidade de fazer a felicidade ou o infortúnio com base no próprio desejo de ser, sendo, esse modelo, uma fonte mais profunda de conduta humana do que as inculcações culturais ou o triângulo familiar.
É preciso fazer justiça ao “espírito de 68”, uma vez que não foi grande coisa na evolução econômica das sociedades contemporâneas, a qual resultou, principalmente, da explosão da tecnologia e da abertura mercadológica das fronteiras, abrindo novos caminhos, avenidas poderíamos dizer, para a realização do desejo individual. O espírito contentou-se em acompanhar um movimento socioeconômico geral que permitiu às dependências motivadas assumirem gradualmente o passo em relação as dependências impostas, graças a este “doçura venenosa” que “adoça a servidão”, de que uma vez falou a La Boétie[16], mas que hoje concerne muito menos os atributos do mestre do que os objetos oferecidos em abundância pelo poder indolor do mercado e da comunicação.
Seguindo a neurociência contemporânea, os fenômenos de vício resultam da ação de drogas e outras práticas psicoativas sobre os circuitos neuroquímicos de recompensa do cérebro, produzindo efeitos estimulantes, produtores de euforia ou sedativos que proporcionam prazer, bem-estar, alívio e vontade de recomeçar. A “desordem viciante” é considerado como uma desregulacão durável desses mecanismos sob o efeito de um consumo não controlado de drogas psicoativas, como o álcool, o tabaco, a cocaína, a heroína, a cannabis e os medicamentos psicotrópicos, que eventualmente produzem sintomas clássicos como o craving (desejo extremo), a sensação de abstinência, o uso compulsivo, a elevação da tolerância, a retirada dolorosa, a invasão de preocupações, o esforço para obter o objeto, as consequências negativas para si mesmo ou para os outros… Esse modelo pode ser estendido às práticas psicoativas sem drogas, como os jogos de azar (o “gambling” sendo oficialmente reconhecido como um vício pela Associação Americana de Psiquiatria[17]), mas também aos videogames, os distúrbios alimentares, a “hipersexualidade”, o esporte intensivo ou as compras compulsivas, que são conhecidos por estarem associados à desregulação de circuitos neurológicos de prazer e de recompensa[18].
No sentido estritamente psicopatológico, os vícios não podem ser apenas individuais, uma vez que o desejo e o sofrimento são sentidos apenas individualmente. No nível coletivo, portanto, só pode haver somas ou “classes”, como diria Bourdieu, de vícios individuais. No entanto, os próprios vícios individuais podem ser consequência de processos coletivos, como foi o caso no contexto da globalização econômica e da abertura de fronteiras, que multiplicou, desde o início do século XX, as ofertas e as oportunidades de consumo de todos os produtos e práticas psicoativas, aumentando assim, de modo mecânico, o número de sujeitos vulneráveis suscetíveis de se tornarem dependentes de alguma coisa[19]. Esta oferta pletórica de agentes psicoativos resultou num aumento considerável dos vícios individuais de drogas oriundas de culturas tradicionais, mas comercializadas em todo o mundo em formas muito mais viciantes, que foram adicionadas aos vícios do álcool, do tabaco e das substâncias oriundas da pesquisa farmacológica, lícitas ou ilícitas, bem como às compras compulsivas, aos excessos alimentar, sexual, de trabalho, de jogos, de telas… Esse contexto de intensificação de ofertas de psicoativas é sem dúvida suficiente para explicar o fato de que os vícios assumiram um caráter de massa nas sociedades liberais do século XX, enquanto que esse não era o caso nos séculos anteriores, nem na maioria das sociedades antigas.
Essa situação é, de fato, inseparável da ampliação da racionalização capitalista a todas as áreas da vida humana: desde o modo de se nutrir ao de se distrair ou fazer festas, passando pelos investimentos profissionais, as comunicações pessoais ou as relações eróticas. A empresa capitalista de fato precisa, por construção, despertar constantemente o desejo do público de expandir seus mercados cada vez mais e de tirar proveito das novas fontes de recompensa ligadas à inovação técnica ou à imaginação industrial. Por seu caráter irreprimível e exponencial, estes processos têm imediatamente uma dimensão viciante, a qual já estava implícita na noção aristotélica de “crematística comercial”, que o filósofo definia como acumulação ilimitada de riquezas e de dinheiro[20], e que ele opunha à chamada crematística dita “natural”, que visa apenas satisfazer as necessidades da comunidade. No entanto, esses processos foram consideravelmente amplificados no final do século XX pelas novas tendências do capitalismo, como a otimização da busca por ganhos, a corrida frenética pelo dinheiro, o estímulo racional das compras, o recurso intensivo ao endividamento das empresas, das famílias e dos Estados, a hiperracionalização de todas as atividades especializadas, a digitalização e a robotização da informação, as tecnologias de marketing e publicitária de captura, a competição generalizada dos indivíduos, as manobras com o objetivo de criar dependências (assinaturas, registros em sites, avisos de segurança, pressões sobre os hábitos de vida, chantagem no emprego…) nos campos do mercado, do trabalho, da comunicação ou do entretenimento, até da religião e da política, tratando eleitores como clientes, não apenas cidadãos.
Continua na parte 2
Notas:
[1] Ver Yves Lescot & Patrick Pharo, Mentalité et gauchisme de Mai 68, tese de doutorado em sociologia do conhecimento, sob direção de Pierre Ansart, Université Paris 7.
[2] Ver Marc Fleurbaey Capitalisme ou Démocratie ? L’Alternative du XXIe siècle, Paris, Grasset, 2006.
[3] Ver Jonathan Israel, A Revolution of the Mind: Radical Enlightenment and the Intellectual Origins of Modern Democracy, Princeton U.P., 2011.
[4] De acordo com o TLF.
[5] Ver André Kaspi, États-Unis 68. L’année des contestations, Complexe, Paris, 1988.
[6] Ver Luc Ferry, Alain Renaut, La pensée 68, Paris, Gallimard, 1985.
[7] Ver Charles Robin, http://www.lengadoc-info.com/1054/politique/gauche-du-capital-rencontrecharles-robin/ entretien à propos de son livre « La Gauche du Capital », Krisis, 2014.
[8] Ver, por exemplo, Daniel Cohn-Bendit, Nous l’avons tant aimée, la révolution, Paris, Barrault, 1985.
[9] Ver J.-P. Le Goff, Mai 68, l’héritage impossible, Paris, La découverte, 1998.
[10] Ver Christian Jambet & Guy Lardreau, L’ange, Paris, Grasset, 1976.
[11] Ver Gilles Lipovetsky, L’ère du vide, Essais sur l’individualisme contemporain, Paris, Gallimard, 1983 & 1993.
[12] Ver Guy Hocquenghem, Lettre ouverte à ceux qui sont passé du col mao au Rotary Club,
[13] Ver Kristin Ross, Mai 68 et ses vies ultérieures, 2002, tr. fr. A .-L. Vignaux, Marseille, Agone, 2010.
[14] Ver Emmanuel Macron, Révolution, Paris, 2016.
[15] Ver Speranta Dumitru, Qu’est-ce que le libéralisme égalitaire ? Comprendre la philosophie de Macron, Slate, 2 mai 2017.
[16] Discours de la servitude volontaire, 1574, Paris, Payot, 1976, p. 144.
[17] Ver DSM5.
[18] Sobre o estado das discussões sobre esta área, ver meus trabalhos Philosophie pratique de la drogue, Paris, Cerf, 2011 e Plaisirs et dépendances dans les sociétés marchandes, Ed. de l’Université de Bruxelles, 2012.
[19] Ver Plaisirs et dépendances…, op. cit.
[20] Ver Politique, I, 9, 1257b32.
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