Por Patrick Pharo (CNRS)
Tradução: Diogo Corrêa
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Os processos viciantes difusos
Embora nem todos os produtos mercantis sejam intrinsecamente psicoativos, sua oferta ainda tem o objetivo de provocar efeitos psicoativos agindo nos receptores endógenos dos consumidores, notadamente por meio de técnicas de marketing e de publicidade que buscam captar o poder motivacional associado aos dispositivos neurológicos de prazer e de recompensa ou, eventualmente, de alívio da dor. É de fato a hiperbolização dessa tendência que confere seu caráter viciante ao capitalismo contemporâneo. Um exemplo emblemático, que aponta para a íntima relação entre os próprios vícios individuais e os processos viciantes inerentes ao capitalismo, é o da epidemia contemporânea de analgésicos preparados a partir de opiáceos sintéticos. O uso dessas substâncias, cujos efeitos podem ser muito mais potentes do que os da morfina, e que foram originalmente prescritos para a dor de pessoas com câncer, foi progressivamente ampliado para todos os tipos de dor aguda ou crônica, levando desde vícios severos a morte de quase 200.000 pessoas de overdose nos Estados Unidos[1]. E, embora os vícios das drogas ilícitas supostamente afetem mais as minorias étnicas, os pobres e os marginalizados, a atual epidemia está afetando toda a população, especialmente as classes brancas abastadas.
Ora, sabe-se que esta epidemia está relacionada com a produção e a comercialização intensiva, desde o final dos anos 90, de um analgésico conhecido desde os anos 20: a Oxycodona, pela empresa farmacêutica Pharma Purdue (OxyContin®), que utilizou metodicamente todos os procedimentos disponíveis de marketing e de lobby junto aos médicos e autoridades de saúde para expandir seus mercados. A conscientização e o alerta das autoridades de saúde dos EUA desde 2010 não foram suficientes para acalmar o ardor comercial do laboratório, incitando-o apenas a adaptar suas preparações e incluir substâncias consideradas resistentes ao vício ou ao tráfico. E acima de tudo, como fizeram antes as empresas de tabaco que haviam sido incluídas na lista negra da opinião pública, a exportar sua produção para países do mundo até então poupados da epidemia[2] – notadamente a França, onde as autoridades ampliaram em 2016 o escopo da prescrição dos analgésicos e autorizaram seu reembolso pela previdência social[3].
Os especialistas em vício hoje falam com frequência de uma “sociedade viciogênica[4]” para dar conta do impressionante paralelismo entre um contexto social que estimula a intensificação do esforço produtivo através da corrida pelo desempenho e pelo sucesso, bem como o consumo pelo culto da satisfação e do prazer, e a dificuldade de alguns sujeitos em regular seus próprios consumos psicoativos. Essa ideia, na verdade, remete a uma noção do sociólogo Emile Durkheim que explicava como certas “correntes sociais” podem influenciar o comportamento individual – neste caso, tratava-se do suicídio e das chamadas correntes “suicidógenas”, ligadas de acordo com ele à escassez ou excesso de integração individual e regulação social[5]. Tratando-se de processos viciantes difusos, minha própria hipótese é um pouco diferente da de Durkheim, porque me parece que eles são intrínsecos ao desenvolvimento do capitalismo, e que os vícios individuais são apenas uma resultante, injustamente estigmatizada e criminalizada. Em termos mais precisos, a ideia seria que o processo de racionalização da economia e das atividades sociais em que Max Weber viu a principal característica da modernidade capitalista, estaria hoje em vias de desembocar em um processo que é ao mesmo tempo hiperracional, uma vez que cada campo de atividade nunca foi tão especializado e racionalizado, mas também coletivamente viciante pelo esforço constante para capturar motivações cada vez mais individuais em um sentido favorável a uma eficiência econômica cujos critérios são, no entanto, amplamente questionáveis e contestáveis.
Estes processos viciantes difusos que favorecem vícios individuais, mas também alimentam um sentimento mais amplo de perda de controle coletivo relacionado aos hábitos práticos inicialmente considerados agradáveis ou gratificantes, tais como o uso de carros a gasolina ou telas, mas que tornam-se mortíferos quando ninguém está em posição de controlar o seu desenvolvimento ou suas consequências, como é o caso notadamente em relação à ecologia, ao vínculo humano ou à corrupção da democracia. Como as palestras e filmes de Al Gore mostram a respeito do iminente desastre ecológico que ameaça todo o planeta[6], estamos sendo confrontados com um processo coletivo de excedência dos limites que afeta a sociedade, percebida como uma espécie de organismo desregulado que se afundará até a morte através de suas formas de vida e de produção, seguindo o modelo de um indivíduo envolvido em um consumo incontrolável de heroína ou crack. É porque cada vez mais pessoas tem esse sentimento de estarem em uma louca corrida viciante que hoje se observa mudanças significativas nos padrões de consumo, com o desenvolvimento de mercados orgânicos, a busca de produtos locais e sem esses aditivos que estragaram seu sabor natural, o desenvolvimento de lojas de comércio segunda mão, a ampliação da chamada economia “colaborativa”, etc. – sem que estejamos certos de que esses “consumos emergentes[7]” colocam em causa o modelo capitalista, eles não sendo provavelmente mais que uma forma transitória[8].
O restante deste livro oferecerá muitos exemplos desses processos viciantes difusos e do sentimento de perda de controle do desejo íntimo que eles inspiram em diferentes domínios sociais: dinheiro, mercado, trabalho, sexualidade, religião, ecologia, política… Mas logo podemos mencionar um, mínimo mas significativo, que diz respeito ao consumo de telas, tornado hoje uma espécie de mania universal que a linguagem comum designa espontaneamente pelo termo de vício, como ilustrado por um clipe de animação do artista americano Moby: ” Are You Lost in the World Like Me? [Você está perdido no mundo como eu?][9]” que circula na Internet. O clipe mostra um pequeno personagem completamente engolido por uma multidão de pessoas ausentes de si mesmos, que se movem cegamente pela cidade, com os seus olhos fixos em seus smartphones, enquanto esmagam tudo que atravessa seu caminho, e que terminam por caírem todos juntos em um precipício. Por detrás desse consumo exagerado de telas – no clipe, trata-se de smartphones, mas o mesmo pode ser dito a propósito do entretenimento televisivo, cujo impacto na vida cotidiana é mais antigo – se escondem na verdade as estratégias concertadas cujo testemunho se pode encontrar, por exemplo, no site Rue 89[10], um antigo engenheiro de computação e “filósofo de produtos” do Google. Ele explica como seu trabalho e o de seus colegas visavam explicitamente “hackear a mente das pessoas através da tecnologia” para criar um “fenômeno de dependência à solicitação tecnológica”. “O telefone”, diz ele, “é aquilo que entra em competição com a realidade e vence. É um tipo de droga. Um pouco como telas de TV, mas disponível o tempo todo e mais poderoso. O problema é que isso nos muda no interior, nos tornamos cada vez menos pacientes com a realidade, especialmente quando ela se mostra entediante ou desconfortável. E porque a realidade nem sempre corresponde aos nossos desejos, voltamos às nossas telas, é um círculo vicioso.”
Por que estamos constantemente em uma tela? Por sua utilidade sem dúvida, em razão das funções práticas da tela, mas também por narcisismo, pela busca de notícias de parentes, pelas tentativas de enganar o tédio …, tantas lacunas comuns suscetíveis de serem preenchidas pela prática do Facebook, Instagram e outras “redes sociais” – as quais também constituem um instrumento completamente inédito de intrusão e de divulgação da intimidade. O modelo dos cigarros cujo consumo provoca, para cada um deles, vinte pequenos shoots psicoativos, dá muito bem conta da busca desses pequenos prazeres repetitivos que experimentamos em observar os outros ou em escutar falar de nós mesmos nas redes, e que entretém permanentemente nosso desejo de recomeçar. No que diz respeito a estas motivações básicas da tela, acrescentam-se os vídeos-games, jogos de azar, RPG (role-playing games) ou encontros amorosos cujo poder viciante é considerado igual ao das drogas mais fortes. Esse fenômeno de encantamento pelas telas dá lugar hoje a uma multiplicidade de produções cinematográficas – incluindo filmes de terror, como Friend requests[11], em que a tela se torna o meio pelo qual uma feiticeira se comunica com o além, sob o fundo de cursos universitários sobre dependência à Internet.
Nesse registro, um dos filmes mais significativos talvez seja Her[12], que conta como, em um futuro muito próximo, um jovem se apaixona por seu “sistema operacional” (systeme d’exploitation) (o bem-nomeado) que é capaz de falar e de ter sentimentos, fazendo com que pareça muito mais humano do que o aplicativo atual da Apple chamado Siri. Pelo fato da moda dos sistemas operacionais humanizados ter se tornado amplamente difundida, vê-se no filme cada vez mais pessoas que vagando pelas ruas falando em um microfone, como é o caso hoje dos telefones celulares, exceto pelo fato de que não é mais com humanos que as pessoas falam, mas apenas com robôs.
Liberdade negativa e liberdade positiva
A ideia de liberdade, que é inerente ao princípio da emancipação e indissociável do projeto progressista da esquerda democrática e socialista, parece hoje ter mudado de lado, tornando-se o estandarte brandido pela direita conservadora e pelos porta-vozes da economia neoliberal contra o dirigismo e os entraves à livre iniciativa. A esquerda progressista acostumou-se, por sua vez, a ritualmente denunciar o “liberalismo” dos que querem desregulamentar a economia e o direito do trabalho em benefício exclusivo das classes dominantes, enquanto que os supostos “liberais” continuam a exigir “reformas” cujo efeito principal, para aquelas que já ocorreram, é diminuir os direitos e benefícios dos assalariados – reforçando o império das regras contratuais que regulam os mercados, especialmente aqueles do dinheiro sobre qualquer outro sistema de regras provenientes do poder público.
No nível econômico, o liberalismo ou o dirigismo são, no entanto, apenas polos de localização entre os quais se pode situar toda a gradação possível de políticas públicas de modo a favorecer o desenvolvimento econômico e/ou a justiça social. Salvo quando se opta pelo anarquismo ou pelo estatismo integral, parece difícil rejeitar um ou outro de modo absoluto, a questão sendo apenas saber quais formas de regulação pública são as mais economicamente eficientes e/ou as mais justas socialmente – os keynesianos, por exemplo, querendo ser liberais e socialistas, enquanto os neoclássico são muito poucos socialistas, e não verdadeiramente liberais quando se trata de impor a qualquer custo, em nome de contratos devidamente estabelecidos, algumas regras do mercado e de propriedade, incluindo aquela dos Estados soberanos. No nível individual, por outro lado, haveria toda razão para rejeitar o dirigismo em nome do liberalismo político ou, mais precisamente, do que poderia ser chamado de liberalismo prático, no sentido de uma reivindicação de liberdade de desejo íntimo e costumes, de escolhas pessoais de vida e de formas de felicidade, que estiveram no centro da revolta de 68 e ainda aparecem como um projeto emancipatório digno de ser defendido[13].
Para clarificar esse sentido de liberdade inerente ao liberalismo prático, pode ser útil retornar à distinção clássica de Isaiah Berlin entre liberdade negativa (o que pode ser feito sem interferência) e liberdade positiva (o que se pode fazer por conta própria)[14]. A diferença, sutil, é baseada no alvo da liberdade: o que se opõe a (liberdade de [freedom from]) ou o que se busca alcançar (liberdade para [freedom to]). Poder-se-ia assim opor o movimento de Maio de 68 como insurgência da liberdade negativa contra quaisquer interferências e dominações dos poderes exteriores (as autoridades universitárias, a polícia, os pequenos chefes…) à evolução do final do século XX e o começo do seguinte como um triunfo da liberdade positiva com vistas à autorrealização pelo sucesso social, pelo desenvolvimento pessoal, pela cultura do prazer, pelo cuidado do corpo e da mente[15], mas também, quando apropriado, pelo retorno aos fundamentos culturais: religiões e tradições particulares consideradas como caminhos privilegiados para a obtenção da perfeição individual. É precisamente esta cultura positiva dos prazeres e outras recompensas consideradas essenciais para a autorrealização que promove mecanismos de produção de vícios: desejo extremo ou craving, falta ou síndrome de abstinência, consumos compulsivos, tolerância que impulsiona o aumento do consumo, a obnubilação de objetos e danos internos ou externos…, que podem, em última análise, limitar e minar o desejo de emancipação que originalmente inspirou a busca pela autorrealização.
Ao longo dos últimos anos, a liberdade negativa sofreu uma série de retrocessos, incluindo notadamente o fortalecimento regular dos movimentos fundamentalistas e conservadores que tem como alvo a decadência dos costumes e o reavivamento das antigas guerras reacionárias contra a livre disposição do próprio corpo e do próprio eu, sobretudo em questões como a procriação para outros, trabalho sexual ou uso de drogas, ou até mesmo a tentativa de colocar em xeque causas já conquistadas, como o direito ao aborto. A cultura liberal dos prazeres e recompensas parece, assim, ter produzido seu antídoto natural, mas de uma forma ainda mais irracional e não menos viciante. Os encadeamentos coletivos que hoje nos aterrorizam como o jihadismo ou o populismo[16] são um resultado desse retorno insidioso de ordem moral, ela própria inseparável do apagamento de qualquer projeto emancipatório coletivo, dando livre lugar no imaginário político a ideais retrógrados que o marxismo, o socialismo ou o esquerdismo não possuem mais meios para com eles competir. De fato, se considerarmos o mundo como um todo, fica claro que as sociedades e grupos a que o liberalismo prático se impõe são uma parte muito minoritária, até mesmo uma mera ilha no conjunto das formas de vida humana.
Contrariamente à esperança que culminou nos anos 60 e 80 de uma ampliação da forma de vida liberal das classes médias euro-atlânticas para toda a humanidade, teríamos a impressão hoje de que ocorreu o oposto, razão pela qual estamos a mil milhas de distância do ideal emancipatório do Iluminismo. Esta situação parece concordar com os autores contemporâneos que defendem prioritariamente a liberdade negativa em sua forma clássica de não interferência[17], ou então de não-dominação, seguindo a teorização neorrepublicana que rejeita a dependência a qualquer instância dominadora suscetível de interferir nas escolhas individuais, mesmo quando ela se abstém de fazê-lo[18]. As formas suaves e insidiosas de dominação são, de fato, mais contrárias à conquista fundamental do liberalismo prático, que é resistir à imposição hierárquica dos desejos pela igualdade estatutária, no modelo que reivindicam as mulheres, minorias e todos os grupos de sujeitados. Essa situação também reforça as críticas de Isaiah Berlin contra a liberdade positiva, quando ele põe em xeque as tendências paternalistas e despóticas das instâncias dominantes (“entidade supra-pessoal”) que buscam corrigir as más práticas dos sujeitos impondo-lhes desejos tidos como mais adequados.
A liberdade positiva como emancipação
No entanto, algumas das correntes políticas mais autenticamente emancipatórias do presente período, seja a ecologia política ou mobilizações contra a pobreza, a repressão aos migrantes, os recuos da legislação social ou a defesa da democracia[19], não podem ser definidas apenas em termos de liberdade negativa. Com efeito, esses movimentos representam grupos e interesses: pobres, jovens desempregados, migrantes, gerações futuras…, que não só têm que resistir a interferências ou posições que os dominam, mas também têm que enfrentar um mecanismo de indiferença que minimiza suas chances de realizar seus próprios desejos, e cujo efeito é fazer com que sua expressão não seja realmente inaudível, mas vã e praticamente inoperante.
Para superar esse mecanismo de descarte, essa massa dos “não levados em conta” precisa ampliar sua liberdade positiva e seu espaço de escolha para obter novas “capacitações” e “funcionalidades”, seguindo os termos de Amartya Sen[20], que lhes permitiriam superar as limitações de perspectivas associadas às suas condições sociais de existência. Esta preocupação de ampliar o espaço de liberdade daqueles que não são levados em conta também pode ser considerada como a única maneira decente de ampliar o espaço de liberdade daqueles que, sem serem vítimas de uma exclusão ou de uma dominação insuportável, sofrem as limitações morais e práticas geradas pelo contexto de realização de seus próprios desejos. A aparição na filosofia política da corrente chamada de “libertarianismo/libertarismo de esquerda”, que propõe se somar aos princípios da auto-aproriação e dos frutos de seu trabalho defendido pelos “libertários da direita”[21] um princípio que revele a dimensão comum dos recursos naturais[22], também corresponde a esta preocupação moral de completar a liberdade dita formal incluída na ideia de liberdade negativa, por uma liberdade mais eficaz de acesso de todos aos bens disponíveis, materiais e morais – o que poderia ser chamado a “parte do comunismo” nas democracias liberais[23].
É neste ponto que parece necessário ampliar a ideia de liberdade positiva, nela incluindo o princípio negativo da emancipação, que permite enfrentar o paternalismo, o despotismo e a repressão do desejo íntimo, mas também a indiferença para com os que não são levados em conta e aquela com relação os riscos de catástrofe coletiva e de desespero moral inerentes à busca egoísta pela autorrealização. Aos olhos de uma opinião crítica difusa, situada principalmente nas classes médias abastadas e esclarecidas, com no entanto certas sobreposições de classes trabalhadoras, a autorrealização não é mais uma fonte suficiente de satisfação quando é confrontada com as consequências insuportáveis da forma de vida liberal, como a ampliação das disparidades de riqueza[24], os danos ecológicos associados aos nossos sistemas de produção e de consumo, a aristocratização da sociedade, a exclusão social da juventude popular, o tratamento dos migrantes ou a surdez da política aos sofrimentos sociais ordinários… Esta rejeição tem uma dimensão moral na medida em que estas consequências são vividas como um obstáculo incapacitante no que concerne à felicidade e à autorrealização dos menos afortunados, mas também dos mais afortunados, que se sentem profundamente frustrados em suas aspirações morais. Esta preocupação moral de unir a liberdade do desejo íntimo dos mais afortunados à uma liberdade universal de acesso a bens básicos, talvez seja o que melhor definiria melhor uma “liberdade de 1968”, em oposição ao que Benjamin Constant[25] chamava de “Liberdade dos Antigos”, no sentido de uma prioridade à participação política dos cidadãos, e a “Liberdade dos Modernos”, no sentido de uma prioridade à autonomia individual.
Para melhor compreender o alcance dessa liberdade de 1968, é útil recordar[26] que sob a ideia de autorrealização, inerente à liberdade positiva, reside uma ideia mais profunda da realização de seus desejos íntimos, isto é, de não-frustração, se nos referimos à concepção hobbesiana de liberdade como “não impedimento para fazer o que se tem vontade de fazer”. Ora, há muitas maneiras de se sentir frustrado: a principal maneira, se se pode dizer, é não ter acesso ao objeto de seus desejos, por causa da interferência ou dominação dos outros – o que justifica a exigência de liberdade negativa -, mas também a falta de capacidades pessoais e a inacessibilidade prática, como ainda é o caso de uma grande parte da humanidade que não goza nem das liberdades negativas nem das liberdades positivas. O outro modo de se frustrar moralmente pelo próprio objeto dos desejos que, mesmo quando obtido, não pode mais preencher a lacuna de forma durável. Essa situação é típica do fenômeno do vício que ocorre quando a obnubilação do objeto se torna uma necessidade tão vital que torna impossível o desfrute sereno desse objeto e arruína, ao mesmo tempo, todos os outros desejos que se possa ter. Em caso de vício ou consumo sentido como viciante, percebe-se seu desejo ao sentir-se profundamente frustrado pelo próprio fato dessa realização. Em outras palavras, realiza-se sem se realizar, e se percebe perdendo-se.
Parece-me que é esse sentimento difuso de perder-se em um desenvolvimento incoercível e autodestrutivo que preocupa, hoje, a parte mais crítica dos habitantes das democracias liberais. Sua situação fundamental é querer sempre a liberdade negativa e a igualdade estatutária, que estão longe de serem conquistas irreversíveis, bem como a liberdade positiva no sentido de autorrealização, pois a felicidade prática de cada um importa maximamente. Mas, ao mesmo tempo, os críticos constatam que as liberdades de que gozam levam os indivíduos, assim como as sociedades, a becos sem saída. No nível individual, a propensão a se lançar em compras consumistas ou competitivas sem fim torna os sujeitos tragicamente dependentes dos objetos aos quais se apegam: bens de consumo ou posições sociais. No nível coletivo, supõe-se a existência de um elo intrínseco entre o excesso de consumo capitalista de classes média e alta são parte e as calamidades que afetam o mundo atual: desastres ecológicos, a pobreza extrema e os conflitos mortais que forçam as pessoas a migrar em condições abomináveis.
No entanto, a consciência crítica daqueles que estão falando sobre a revolução hoje não parece desejar, como os marxistas e os esquerdistas do passado, a derrocada de todos os sistemas sociais existentes, nem mesmo da própria economia de mercado. E, com algumas exceções, ela deseja menos ainda recorrer a uma violência revolucionária considerada insustentável por suas consequências humanas. Ele simplesmente considera que nos últimos quarenta anos as democracias liberais se afastaram dos princípios de igualdade e progresso social que lhes eram consubstanciais, sob o efeito de uma tomada de poder pelas versões mais conservadoras do liberalismo econômico, prolongadas na filosofia política pelo que é chamado de “libertarianismo do direito”[27], corrente de pensamento que recomenda reduzir a intervenção do Estado para se livrar de todas as restrições que impedem o desenvolvimento dos negócios tais como concebidos por aqueles que o realizam e pelos economistas que compartilham de sua opinião, uns e outros considerando-se como os melhores juízes das melhores perspectivas para a sociedade[28].
A consciência crítica e alternativa a esse modelo, incluindo aí muitos economistas, responde que é, ao contrário, mais do que nunca necessário submeter a atividade de empresários e de financiadores a uma regulação social e política decidida pelo poder público[29], excluir a mercadorização de setores essenciais ao desenvolvimento da vida humana, como a educação, a saúde ou a cultura e, de um modo mais geral, respeitar procedimentos consoantes com o habitus democrático que dá a cada voz o mesmo valor. Segundo essa consciência crítica, essa seria a melhor maneira não apenas de relançar a atividade e o emprego, mas também de garantir uma redistribuição social tornada necessária pela impossibilidade de os mais pobres terem acesso a recursos econômicos, naturais ou sociais. As regras de apropriação desses recursos tornam de fato praticamente impossível para alguém subsistir fora do sistema social – em contradição com o que é chamado na filosofia política de “cláusula lockeana”[30], que limita a apropriação individual à possibilidade de que haja o suficiente para si e também em qualidade tão boa para os outros.
Cine-metodologia da emancipação
À pergunta: de que mais precisamos para nos emancipar? poder-se-ia responder, seguindo uma interpretação anarquista da revolta de 1968, que seria preciso se emancipar de qualquer forma de autoridade ou tutela sobre si mesmo e, em particular, daquela exercida pelo Estado[31]. No entanto, esta resposta levanta a difícil questão de saber como garantir o funcionamento das instituições de equipamentos, cuidado, de proteção ou de redistribuição, que hoje são essenciais para a nossa forma de vida, sem a autoridade do Estado. Por sua parte, os marxistas continuam a pensar que o capitalismo é a fonte dos males que os atuais habitantes do planeta sofrem. Mas aqui o exemplo de Estados nos quais os meios de produção foram socializados (a Rússia soviética) ou ainda estão em vigor (China comunista), e que também geram injustiça social e danos ecológicos, é uma boa razão para se mostrar cauteloso.
Outra razão para ser cauteloso, mais profunda em termos antropológicos e que vale tanto contra o anarquismo quanto contra o marxismo, é que a expectativa de recompensa e de prazer, essencial para a constituição do sistema de motivação humana, é a principal causa de dependências sociais, sejam elas ligadas a pessoas, objetos, autoridades ou atividades econômicas. É essa expectativa de recompensa que, no uso e no decorrer do tempo, cria em todos os habitus da vida pessoal, que não nascem de uma herança social, mas do qual é ainda mais difícil de emancipar-se. As atividades econômicas, em particular, geram expectativas de ganho e sucesso que são tão difíceis de regular quanto qualquer outra expectativa de recompensa. A fonte de processos viciantes, sejam eles individuais ou coletivos, está precisamente relacionada ao caráter potencialmente insaciável de não importa qual desejo de recompensa. E, como o sabem bem os parentes de alcoólatras, viciados em heroína ou jogadores patológicos, as lições de moral não mudam nada. Ora, a grande novidade do neoliberalismo é a de ter sabido explorar, como nenhum plano econômico antes dele, essa tendência antropológica fundamental herdada da história evolutiva da espécie humana – o caso de drogas lícitas ou ilícitas utilizadas em massa em todo o planeta, apesar de todos os esforços contrários, sendo emblemático do fenômeno.
No restante deste livro, eu não pretendo analisar diretamente as causas políticas e econômicas dos danos infligidos pelas democracias liberais em suas periferias, como a segregação interna de migrantes e de pobres, as guerras e a miséria em uma grande parte do planeta, ou em si próprias, como os danos ambientais e o mal-estar moral de seus membros privilegiados. Não que eu questione a existência desse tipo de causas, mas por falta de uma competência particular sobre esses assuntos, evitarei acrescentar minha voz àquela de todos aqueles que já os apresentaram e analisaram. Meu objetivo não é construir uma nova utopia, nem propor uma teoria do melhor governo, mas apenas atualizar e tornar mais sensível um princípio de emancipação que atravessa a história moral das democracias liberais. Eu me aterei sobretudo a uma abordagem indireta dessas causas político-econômicas, fundadas em uma análise da consciência crítica tal como ela aparece na produção cinematográfica contemporânea.
A “cine-metodologia”, ou sociologia dos métodos do cinema, que aplicarei a estas obras, permitirá fazer realmente uma espécie de inventário de formas de dependência tornadas hoje tão tirânicas quanto os alvos visados pela filosofia do Iluminismo em sua época: o absolutismo, a intolerância, a escravidão, as restrições à liberdade de pensamento e de expressão… Tratar-se-á, assim, de explicitar os novos alvos da emancipação, começando por uma perspectiva renovada do projeto de emancipação do desejo íntimo defendida pelo movimento de contestação de Maio de 68, o qual, na minha opinião, é a melhor maneira de mensurar os obstáculos à emancipação nas democracias liberais atuais. Com base nisso, revisarei as dependências e os processos viciantes que, de acordo com minha interpretação da crítica cinematográfica, impedem a emancipação em diferentes áreas da vida social: a influência do dinheiro e do mercado sobre a expressão prática do desejo íntimo, a vigilância burocrática e informática que aprisiona os habitantes locais em uma rede de controle insidiosa e de solicitude hipócrita, os controles religiosos que multiplicam as interdições – sexuais em particular -, os efeitos anti-natureza de nossas motivações mais naturais que entretêm mecanismos incontroláveis de degradação ambiental, e, finalmente, os efeito descomunitarizantes da democracia, reduzida a eleição pontual de representantes e a seu confinamento nas fronteiras nacionais que excluem cada vez mais violentamente os intrusos.
Se eu escolhi de me apoiar principalmente sobre conteúdos ficcionais ou documentários ficcionais da produção cinematográfica é porque essa constitui uma informação insubstituível sobre o estado da consciência social de uma época, oferecendo uma janela do mundo social sob todos os aspectos que prendem a atenção dos cineastas. Estes são, na verdade, fabricados por membros esclarecidos das classes médias abastadas e instruídas que compartilham com as produções cinematográficas uma grande parte de suas posturas práticas, opiniões e sentimentos, e que tem, por vocação, o desejo de revelar o funcionamento e efeitos morais significativos do estado de consciência social. É, por assim dizer, uma espécie de funil da experiência social comum, acolhendo e refletindo através de equipes que reúnem os seus conhecimentos dispersos do tema do filme e de seu contexto social para a partir disso produzir uma versão ficcional tão fiel quanto possível à ambição coletiva de testemunho. Quaisquer que sejam os meios, desvios, deformações, superestimações, caricaturas, estereótipos, mistificações… (e Deus sabe que as há!) operadas pelos cenários, enquadramentos e edições, a produção cinematográfica se mantém pelo fato de sua produção concertada em torno do tema do filme ter seu efeito crucial do testemunho.
É este efeito de testemunho polifônico que analisarei seguindo os métodos da sociologia moral que consistem em extrair uma filosofia prática inerente às pessoas afetadas por uma domínio social ou de preocupação[32], o domínio aqui sendo o da “política”, entendida como tudo o que toca a evolução da vida em sociedade, vista por aqueles que não fazem, mas tentam, através de suas obras, revelar seu o significado e as suas consequências. Dizer a emoção que percebi e senti ao descrever detalhadamente uma cena de cinema me parece ser uma das melhores maneiras de revelar aspectos da vida social que todos conhecem muito bem em sua vida, especialmente no que diz respeito ao conflito entre o prazer da dependência e o desejo de emancipação, mas que nenhuma sociologia seria capaz de compreender se o cinema já não tivesse passado por esse caminho.
O filósofo Jürgen Habermas havia proposto um método para a emancipação, o da ética da discussão, considerado como a melhor maneira de superar os sistemas de poder opressivo e do conflito de interesses.[33] Mas, se consideramos o trabalho das instituições europeias como uma ilustração prática do método, pode-se temer que isso não seja suficiente para a emancipação, dadas as políticas que favoreceram os interesses dos financiadores e dos detentores dos fundos de pensão, tudo isso em detrimento do resto da sociedade, e além disso não cessaram de orquestrar uma postura mesquinha e míope no que concerne ao acolhimento dos migrantes. A análise dos conteúdos emancipatórios que gostaria de apresentar mais adiante neste livro oferece uma sócio-metodologia alternativa, baseada em expressões sociais e culturais difusas das quais o cinema é um meio muito significativo. Essa é uma outra maneira de argumentar em favor da emancipação para torna-la o princípio tão óbvio e necessário quanto poderia ter sido em outros períodos históricos, no tempo da Revolução Francesa ou ainda quando tratava-se de caçar o ocupante nazista. Sabendo que as atuais dominações não são da mesma ordem que aquelas da realeza, do fascismo ou mesmo dos Trinta gloriosos anos, quais suscitariam em Maio de 1968 a revolta dos estudantes e dos trabalhadores?
Notas
[1] Ver Los Angeles Times, Full Coverage: Oxycontin Investigation, May-Aug. 2016.
[2] Ver Enquête. OxyContin, un antidouleur addictif à la conquête du monde, Courrier international, 8/2/2017.
[3] Ver a edição n°10 da revista farmacêutica Le Flyer, maio 2016. Agredeço a Thierry Kin pela documentação que me deu sobre o tema.
[4] Ver Jean-Pierre Couteron, Variations sur les petites mécaniques de l’accompagnement, une clinique des modes de vie?, Introdução a sexta edição do Journées nationales de la Fédération Addiction, Marseille, 9-10juin 2016.
[5] Ver Emile Durkheim, 1897, rééd. 1930, Le suicide, Paris, PUF.
[6] Ver Davis Guggenheim, Une vérité qui dérange,Documentaire, USA, 2006.
[7] Voir Dominique Desjeux & Philippe Moatti (éds.), Consommations émergentes La fin d’une société de consommation?, Lormont, Le bord de l’eau, 2016.
[8] Ver abaixo, ch. 6.
[9] Are You Lost in the World Like Me?, Moby, USA, 2016.
[10] Alice Maruani, entrevista de Tristan Harris, « Des millions d’heures sont juste volées à la vie des gens », Rue89, 04/06/2016.
[11]Friend requests, Simon Verhoeven, USA, 2016.
[12] Her, Spike Jonze, USA, 2014.
[13] Ver abaixo, ch. 2.
[14] Four Essays on Liberty, Oxford UP., 1969.
[15] Ver também Axel Honneth, La société du mépris Vers une nouvelle théorie critique, Paris, La Découverte, 2006.
[16] Ver abaixo, cap. 7.
[17] Ver Ruwen Ogien, Mon dîner chez les cannibales et autres chroniques sur le monde d’aujourd’hui, Paris, Grasset, 2016.
[18]Ver P. Pettit, Républicanisme : une théorie de la liberté et du gouvernement, 1999, tr. fr. Paris J.-.F. Spitz, Paris, Gallimard, 2003.
[19] Ver Sandra Laugier, Albert Ogien, Le principe démocratie. Enquête sur les nouvelles formes du politique, Paris, La Découverte, 2014.
[20] Voir “Capability and Well-being”, in M.C. Nussbaumm, A. Sen, The Quality of Life, Oxford, Clarendon Press, 1993.
[21] Ver Robert Nozick, Anarchie, Etat et Utopie, 1974, tr. fr. E. d’Auzac de Larmartine & P.-E. Dauzat, Paris, PUF, 1988.
[22] Para uma síntese, ver Speranta Dumitru, Libertarisme de gauche, Raisons politiques, n° 23, 2006.
[23] Ver abaixo, cap. 7
[24] Ver Observatoire des inégalités, Les écarts de revenus entre les plus pauvres et les plus riches continuent d’augmenter, 2016, texto online
[25] Ver Benjamin Constant, De la liberté des anciens comparée à celle des modernes, Discours prononcé à l’Athénée royal de Paris, 1819, online em https://www.panarchy.org/constant/liberte.1819.html
[26] Ver também Philip Pettit, L’instabilité de la liberté comme non-interférence : le cas d’Isaiah Berlin, Raisons politiques, 2011/3 (n° 43), p. 93-123
[27] Ver Robert Nozick, Anarchie, Etat et Utopie, op. cit.
[28] Ver Luc Boltanski, De la critique Précis de sociologie de l’émancipation, Paris, Gallimard, 2009.
[29] Ver Alexis Cukier, Fabien Delmotte, Cécile Lavergne, éds., Émancipation, les metamorfoses de la critique sociale, Broissieux, éd. du Croquant, 2013.
[30] Ver Alexis Cukier, Fabien Delmotte, Cécile Lavergne, éds., Émancipation, les metamorfoses de la critique sociale, Broissieux, éd. du Croquant, 2013.
[31] Ver Comité invisible, L’insurrection qui vient, Paris, La Fabrique, 2007.
[32] Ver La belle vie dorée sur tranche, Paris, Vrin, 2017.
[33] Ver Yves Cusset, Sommes-nous encore intéressés à l’émancipation ?, Archives de Philosophie, 2003/4, T. 66, p. 585-602.
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